COLUNAS
Quarta-feira,
20/3/2013
Sultão & Bonifácio, parte III
Guilherme Pontes Coelho
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(Parte I e Parte II)
Brás Cubas tinha um gato, chamado Sultão, que foi mencionado apenas uma escassa vez em todo o relato de suas memórias póstumas. A menção foi no magistral Capítulo VII das Memórias Póstumas de Brás Cubas, quando Sultão, transfigurado num hipopótamo, serviu de montaria a Cubas e o levou primeiro à origem e depois ao fim dos séculos. Uma jornada galopante à velocidade da luz. Sem dúvida um dos capítulos mais memoráveis (trocadilho involuntário) da nossa literatura. Mas é intrigante que o gato seja mencionado apenas uma vez.
É por isso que, para entender o caso Sultão, estamos abordando outro fenômeno da literatura felina, o Bonifácio de Afonso da Maia, gato e dono queirozianos, em tudo diferentes das criaturas machadianas.
Nas memórias de Brás Cubas, não há descrições do Sultão. Não há nada, na verdade. Ele só aparece uma vez, brincando com uma bolinha de papel, à porta da alcova do doente Cubas, quando Cubas está emergindo do tal delírio (que é o nome do capítulo, "O Delírio"). Já do Bonifácio de Afonso da Maia é possível fazer um retrato falado. Ele é um angorá gordo, branco de manchas louras. Se não há trechos da relação entre Cubas e o gato no romance de Machado de Assis, Os Maias é um romance entupido de cenas nas quais a presença de Bonifácio é indispensável.
Na verdade, a maioria das menções a Bonifácio em todo o romance de Eça de Queiroz é sobre a sua soberba habilidade de sestar ao sol, tanto ao ar livre quanto a portas fechadas, principalmente a portas fechadas, quando ele pode se deitar sobre sua amada pele de urso. Mas toda aparição de Bonifácio pontua um hábito importante para o seu dono, Afonso da Maia. Por exemplo, Bonifácio almoçava junto com os humanos; e também participava dos desdobramentos pós-almoço:
No Ramalhete, depois do almoço, com as três janelas do escritório abertas bebendo a tépida luz do belo dia de março, Afonso da Maia e Craft jogavam uma partida de xadrez ao pé da chaminé já sem lume, agora cheia de plantas, fresca e festiva como um altar doméstico. Numa facha oblíqua de sol, sobre o tapete, o Reverendo Bonifácio, enorme e fofo, dormia de leve a sua sesta.
O Ramalhete, o casarão dos Maias em Lisboa, era um ponto de encontro aristocrático para intelectuais de várias cepas e gerações. Um lugar exclusivamente masculino, capitaneado com suavidade por Afonso. Bonifácio é um dos cavalheiros que goza desta exclusividade, como fica evidente nesta outra passagem:
...ouvia-se já no escritório de Afonso, através da porta aberta, a voz petulante do Damaso falando alto de handicap e de dead-beat... E foram-no encontrar discursando sobre as corridas, com convicção, com autoridade, como membro do Jockey-Club. Afonso, na sua velha poltrona, escutava-o, cortês e risonho, com o Reverendo Bonifácio no colo. Ao canto do sofá, Craft folheava um livro.
Craft, o inglês, amigo e admirado pelos Maias, tanto pelo avô quanto pelo neto, é tão decorativo nesta cena quanto o gato. Além disso, Craft e Bonifácio, mais o sorriso cortês de Afonso, pontuam a cena com aquele toque de testemunhas impávidas às eternas bobagens de Damaso.
O desenrolar da cena aumenta a presença de palco de Bonifácio:
Um escudeiro entrou com uma carta para Afonso, numa salva. O velho, sorrindo ainda das idéias de Damaso sobre a civilização, puxou a luneta, leu as primeiras linhas; toda a alegria lhe morreu no rosto, ergueu-se logo, tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifácio.
Algum contratempo relativo às caridades de Afonso pedia a presença dele. Mesmo que "toda a alegria" tenha lhe morrido no rosto, Afonso levantou-se e, "tendo depositado cuidadosamente sobre a sua almofada o pesado Bonifácio", foi embora. A atenção dispensada ao gato pelo gesto de o depositar sobre a almofada é maior que qualquer tipo de satisfação aos presentes - satisfação que não foi concedida. Afonso não se despediu de ninguém. Damaso continuou falando bobagens.
Damaso, por sinal, com seu chic a valer, é um dos personagens mais engraçados e idiotas do romance. Na cena acima, ele está curtindo o privilégio de estar com os homens do Ramalhete, entre eles Bonifácio, que não sei se concede o mínimo de atenção aos deslumbramentos do gorducho Damaso. A próxima vez em que ambos, Damaso e Bonifácio, aparecem na mesma página já é na segunda parte do romance, quando os destinos de Maria Eduarda e Carlos Eduardo começam a se tocar. É quando eles conversam: "Uma tarde falaram do Damaso. Ela achava-o insuportável, com a sua petulância, os olhos bugalhudos, as perguntas néscias." Trataram de mudar de assunto, e mais adiante:
Pouco a pouco nas suas conversas foi havendo uma intimidade mais penetrante. Ela quis saber a idade de Carlos, ele falou-lhe do avô. E durante essas horas suaves em que ela, silenciosa, ia picando a talagarça, ele contou-lhe a sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, e as viagens... Agora ela conhecia a paisagem de Santa Olávia, o Reverendo Bonifácio, as excentricidades do Ega.
Não é incrível que o gato esteja elencado aqui, entre as coisas que fazem parte do universo de Carlos? Ele conta a ela sobre "sua vida passada, os planos de carreira, os amigos, as viagens" - acredito que o Bonifácio tenha sido inserido entre os "amigos". Depois de saber da intimidade de Carlos, ela passa a conhecer "a paisagem de Santa Olávia, o Reverendo Bonifácio, as excentricidades do Ega"- esta menção ao gato está no que ela guarda do que Carlos diz a ela. Além do mais, se ela o tem como "Reverendo Bonifácio", é porque deve ter ouvido a história dos sucessivos batismos do gato, que nasceu Bonifácio, tornou-se D. Bonifácio de Calatrava, o caçador, e aposentou-se como Reverendo Bonifácio, o gordo eclesiástico.
Infelizmente, será triste a próxima vez em que Maria Eduarda ouvir sobre Bonifácio.
(Parte IV)
Guilherme Pontes Coelho
Brasília,
20/3/2013
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