COLUNAS
Quarta-feira,
24/4/2013
Bento XVI e os bastidores do Vaticano
Humberto Pereira da Silva
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O
Papa Bento XVI, entre o claro e o escuro
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No conclave de 1978, o Colégio dos Cardeais escolheu Albino Luciani, que passou a se chamar João Paulo I, para Bispo de Roma. O destino, no entanto, lhe reservou somente trinta e três dias de pontificado: sua morte repentina, assim como a opacidade do Vaticano no esclarecimento de suas movimentações internas, gerou as mais diversas insinuações. A mais especulativa e fantasiosa é a de que teria sido assassinado por envenenamento - é o que defende o jornalista britânico David Yallop, no livro Em nome de Deus.
Passados trinta e cinco anos, com oito de pontificado, inesperadamente o Papa Bento XVI anuncia sua renúncia. Tão certo quanto o movimento da Terra sobre seu eixo - após a revolução copernicana, claro - inevitável o surgimento de toda sorte de rumores sobre o que teria motivado Bento XVI a sair de cena. Com sua abdicação, a luz do Espírito Santo se desloca para o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio, que, escolhido como novo Sumo Pontífice, adota o nome de Francisco.
Para reforçar o quanto a Igreja Católica se move no tabuleiro do poder de maneira pouco inteligível aos leigos, a escolha de Bergoglio é tão somente o sinal mais recente. Desconhecido nos círculos de poder, sobre o Papa Francisco pesam insinuações a respeito de suas relações com o governo argentino, no período mais tenebroso de sua história recente: a ditadura militar (1976-1983), que responde por assombroso número de desaparecimentos e assassinatos de quem se opôs ao regime. Horacio Verbitsky, ex- guerrilheiro dos Montoneros, sustenta no livro El Silencio que Bergoglio teria sido agente duplo durante a ditadura.
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Compreender os meandros da Igreja Católica, as razões que impulsionam suas escolhas e decisões chaves, seus bastidores, em suma, não é exercício para "não iniciados", pois, a cada movimento em aparente normalidade, armadilhas inesperadas. Essa exigência foi subestimada pelo jornalista italiano Gianluigi Nuzzi, que no ano passado publicou Sua Santidade: as cartas secretas de Bento XVI (Ed. Leya, 301 pág.). Neste livro ele anuncia que pela primeira vez são revelados detalhes dos aposentos do Papa e sua correspondência privada. Inevitável supor que o acesso de Nuzzi a informações e documentos reservados do núcleo de poder da Igreja traria revelações, com perdão da redundância, guardadas a sete chaves.
Nuzzi procede, então, à descrição minuciosa dos caminhos que tomou para ter acesso a informações e documentos de uma instituição que se pauta pela rígida separação entre o sigiloso e o público. Lembrar que, entre os sacramentos, a eucaristia é pública, mas não a reconciliação. Ou seja, revelar o que, na própria constituição da Igreja, é explicitamente secreto exige um tanto de cautela, sutileza para o detalhe: procurar, assim, interpretar o que efetivamente é mostrado, e manter a guarda alta sobre o que explicitamente é vedado.
Nuzzi afirma ter tido acesso a uma fonte privilegiada que trabalha há cerca de vinte anos para o Vaticano. Essa fonte, a que ele dá o nome de Maria, lhe passou informações e cópias de documentos secretos da mesa de Bento XVI. Esses documentos epistolares trazem informações sobre lavagem de dinheiro no IOR, o banco do Vaticano, a interferência da Igreja na política italiana, disputas entre jornalistas vinculados a órgãos de imprensa dirigidos pelo Alto Clero (Avvenire, L´Osservatore Romano...) e intrigas entre movimentos estratégicos para agregar fiéis, como o Opus Dei, o Comunhão e Libertação (o Papa Francisco segue suas orientações), os Legionários de Cristo e os Lefebrianos.
Nas páginas de Sua Santidade, num estilo similar ao Wikileaks, é exibida farta documentação que parece não deixar dúvida, tanto sobre focos de divisão interna da Igreja, quanto sobre a adoção de práticas que deixariam rubros expoentes laicos de corrupção política, ou mesmo do crime organizado. Nos documentos secretos de Bento XVI - parte deles anexados no final do livro - provas de que o Papa lidava com conflitos terríveis, que inexoravelmente avizinhavam perda de controle.
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Publicado no ano passado, o livro pode bem deixar a sensação de que a revelação das cartas que circulavam na mesa do Papa prenunciou sua renúncia. Aqui, contudo, extrair conclusões de Sua Santidade exige prudência: com respeito ao que é revelado nas missivas, assim como suas virtuais consequências, deve-se atentar para não cair no erro da precipitação. Sob os holofotes dos meios de comunicação no mundo moderno - tenhamos em vista a famosa tese debordiana da sociedade de espetáculo -, por mais arrepiantes que sejam as revelações dos bastidores do Vaticano, à luz da história há episódios que tornam os atuais não mais que gesto lúdico para distrair pueris.
Entre 1309 e 1377 o papado foi transferido de Roma para Avignon. O rei francês, Felipe, o belo, exigiu que Clemente V estabelecesse a sede papal na França. No conclave de 1378, Urbano VI foi escolhido como novo Papa e se recusou a ficar em Avignon, restabelecendo o papado em Roma. O Colégio dos Cardeais, no entanto, iniciou uma campanha contra sua escolha. Realizou-se um novo conclave, no qual foi escolhido como Papa Clemente VII, que passou a residir em Avignon. Inicia-se então um grande cisma, com os dois Papas reclamado para si o poder sobre a Igreja Católica. Nesse momento de crise, surgiria ainda um terceiro Papa, Alexandre V, em Pisa. O cisma terminou em 1417, com o Concílio de Constança, quando o papado restabeleceu-se em Roma e se mantém até hoje. Não é difícil imaginar que o prestígio do papado foi profundamente afetado com o cisma.
Pouco tempo depois, Rodrigo Borgia (1431-1503), Papa Alexandre VI, viveu o esplendor da cultura do Renascimento, sendo responsável pela proteção de artistas, de poetas e de importantes programas de restauração de obras de arte. Para muitos historiadores, contudo, no que se refere à moral é o pior Papa de que se tem registro. Seu pontificado é o melhor exemplo de corrupção papal: usou sua fortuna e influência para comprar os votos no Conclave que o elegeu em 1492; viveu com diversas amantes, a mais famosa foi Giulia Farnese, que teria sido modelo para imagem de Nossa Senhora pintada por Pinturicchio; teve pelo menos sete filhos, entre os quais, Cesar Borgia, cujos princípios políticos inspiraram O Princípe, de Maquiavel. Acusado de simonia (venda de favores divinos) por Girolano Savonarola, frei dominicano, o excomungou; mas como este continuou sua pregação, foi entregue à autoridade secular, que o condenou à morte por heresia.
No livro Pageant of the Popes, o historiador John Farrow cita o seguinte trecho de autor anônimo: "Não existe abuso ou vício que não seja praticado abertamente no palácio do Papa. A perfidez dos Citas e dos Cartaginenses, a bestialidade e selvageria de Nero ou Calígula são superadas. Rodrigo Borgia é um abismo de vício, um subversor da justiça humana e divina". Farrow registra, ainda, que esse autor não sofreu vingança e foi recebido por Alexandre VI em audiência.
À luz de episódios como estes, o momento atual não é mais que uma leve brisa. Bem entendido, quem acreditar que revelações como as de Nuzzi contribuem para uma renovação da Igreja Católica, ou abalam suas estruturas, ignora a História. Desde a queda do Império Romano, não há momento crucial na história em que a Igreja se eximiu de posição controversa: sobre as relações entre Pio XII e os regimes totalitários na Europa durante a Segunda Guerra pairam acusações de colaboracionismo (ler a esse respeito O Papa de Hitler: a história secreta de Pio XII, do jornalista britânico John Cornwell).
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Por mais que anuncie revelações bombásticas, Sua Santidade não vai além da superfície. Não é caso aqui julgar as intenções de Nuzzi: se agiu movido por oportunismo descarado ou com tiques de bobo da corte. Cada leitor tirará suas conclusões. Mas é caso de ponderar que, como muitos similares sobre segredos e mistérios do Vaticano, Nuzzi promete mais do que cumpre.
Isso acontece basicamente porque, diante de uma instituição com a sobrevivência histórica da Igreja Católica, Nuzzi e seu livro não passam de café pequeno. Seu trabalho solitário, a partir de uma fonte que não se sabe que posição ocupa no Vaticano, deixa a suspeita de que ele teve acesso a um arvoredo, mas nem de longe à floresta. O que escreve sobre o Opus Dei ou o Comunhão e Libertação não vai além do que um colegial escreveria numa tarefa escolar.
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Certo, mas e as missivas sobre a mesa do Papa? Ora, revelam tão somente ressentimentos típicos de quem se sente injustiçado em situação isolada. Não passam de reclamações que, em qualquer ambiente de trabalho, são devidamente chamadas de picuinhas. Propiciam relatos de casos que não podem ser investigados com a devida transparência, por isso são descritos de modo imprecisos, vagos, sem que se consiga visualizar conexões efetivamente comprometedoras.
É sintomático que, apesar de sugerir no título do livro, Nuzzi não teve acesso a qualquer linha secreta escrita por Bento XVI. Por que? Em qualquer estrutura de poder, uma missiva confidencial expressa, justamente, fragilidade de quem a envia: quem detém o poder se move em suas fronteiras sem pedir para ser ouvido por meio de subterfúgios. Transitar de modo indireto é o mais evidente sinal de que não faz parte dos bastidores.
Vale dizer: Nuzzi não teve acesso aos aposentos papais; melhor, teve acesso a picuinhas típicas de um cafezinho num ambiente de trabalho.
Isso desqualifica completamente seu livro? Não! Mas exige que não se tire conclusões precipitadas. Embora se possa aludir que o livro traz indícios sobre as razões da abdicação de Bento XVI, é mais digno de nota observar que Jorge Mario Bergoglio não existia nas estruturas de poder: em Sua Santidade, Nuzzi não lhe reserva uma única menção.
Crise numa estrutura de poder; movimentação nos bastidores para eliminar o foco da crise; mas entre os protagonistas a ausência daquele que ascende ao poder...
Pois é, o Colégio dos Cardeais, iluminado pelo Espírito Santo, enxergou Jorge Mario Bergoglio: as paredes do Vaticano são mais intransponíveis do que possa sonhar nossa vã filosofia...
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Em tempo, o argentino Adolfo Pérez Esquivel, ativista de direitos humanos, prêmio Nobel da Paz em 1980, torturado pela ditadura, negou que o Papa Francisco tenha sido cúmplice do regime...; sim, em seu depoimento muito mais do modo como a Igreja Católica exerce o poder do que nas cartas secretas reveladas por Nuzzi...; Esquivel, digamos, como Bergoglio no tempo da ditadura, podia ter feito voto de silêncio...
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
24/4/2013
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