COLUNAS
Sexta-feira,
5/4/2013
Nice, Bebeth e Anjali
Marta Barcellos
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Bem-vindo ao mundo de Bebeth. No entanto, antes de adentrarmos a casa de chá em que Bebeth fará a sua aparição, em grande estilo, para o grupo de quatro amigas, é preciso dar crédito a quem nos proporcionará essa oportunidade. Para isso, preciso apresentar Nice, minha cabeleireira, uma mulher nova para quem já tem neto, que trabalha em pé muitas horas seguidas, mas só pensa nisso quando chega o final do dia. Ela tem folga aos domingos e segundas-feiras, mas é das segundas que gosta mais.
Já Bebeth não é acostumada a ficar horas em pé, nem quando vai ao shopping. No salão de beleza, só fica sentada. Nice, não. Nice gosta muito de Bebeth, do jeito que é possível gostar das clientes do salão de Ipanema.
Para efeito de comparação, o ambiente de um cabeleireiro é como um táxi no quesito "jogar conversa fora e descobrir outros mundos" - embora só esteja acessível às mulheres não-Bebeth que venceram algum preconceito inicial em nome de um cabelo bem cortado e bem hidratado. Foi no salão que ouvi a história de Bebeth, contada por Nice - e talvez o que mais tenha me deixado perturbada, ao fim da conversa, foi a constatação de termos Nice em comum em nossas vidas tão diferentes, eu e Bebeth.
Comecemos por Nice. Como já antecipei, ela não é jovem, e talvez sofra por isso em seu local de trabalho, onde sempre ingressam novas profissionais - coloristas, cabeleireiras, manicures recém-treinadas pela rede de cabeleireiros carioca. Mulheres com muita energia em seus vinte e poucos anos. Como qualquer mulher madura que trabalha, Nice percebeu que precisava se diferenciar para não ser trocada por duas profissionais menos experientes e mais baratas. Foi então que apostou no treinamento em megahair.
A peculiaridade do megahair é que são necessárias muitas horas consecutivas para concluir todo o procedimento, caso a ideia seja aumentar o comprimento e dar volume aos cabelos - ou seja, ganhar uma bela cabeleira. Pequenas mechas são coladas uma a uma. Depois, tudo é tingido da mesma cor. Como a agenda de Nice vive bloqueada por causa das clientes do megahair, tive minha curiosidade aguçada sobre o assunto, como quem embarca em um táxi numa cidade pouco familiar. O que leva uma mulher a fazer megahair?
Nice talvez enumerasse como primeiro motivo o arrependimento em ter cortado o cabelo, mas, como nos conhecemos há alguns anos, ela pode ser mais sincera: olha, o que leva uma mulher a fazer megahair é ter muito dinheiro. Eu insisto na questão do tempo, porque uma mulher que pode passar dois dias inteiros no salão não tem tempo para ganhar dinheiro. Claro - e Nice me explica como se revelasse a uma criança que a vida não é justa -, as clientes de megahair não precisam trabalhar para ganhar o dinheiro que gastam.
Mas, olha, nós fizemos um treinamento em São Paulo (é Nice falando) e tivemos uma palestra muito boa. O palestrante nos orientou a não tratar mais as clientes como dondocas ou peruas. As mulheres ricas hoje em dia não usam brilhantes e peles, e até gostam de parecer que trabalham. Querem mais ter experiências do que coisas. E são mais discretas.
Com exceção de Bebeth. Não que Bebeth seja uma dondoca típica, a tal dos brilhantes e peles. É que é difícil pra ela ser discreta. Alta, magra, Bebeth tem um sorriso radiante, e agora vou ter que continuar a descrevê-la como ela ainda era naquele dia, véspera do megahair que bloqueou a agenda de Nice. Bebeth usava um corte da cabelo ousado: um chanel de bico, platinado. Se você não frequenta cabeleireiros em Ipanema, vai precisar de uma explicação mais detalhada para visualizar Bebeth, então vamos lá: chanel é aquele cabelo curto e cortado reto, na altura das orelhas, como o da estilista francesa. O bico é porque, no caso de Bebeth, o corte não é tão reto: as laterais junto ao rosto são mais compridas. Platinado é a cor dos cabelos da Marilyn Monroe, mas acho que isso todo mundo sabe.
Então, continuando, Bebeth é alta, e Nice está satisfeita em informá-lo. Às vezes surgem clientes baixinhas e gordinhas querendo "botar cabelão". Fica horrível (é Nice falando). Mas não há como dissuadir essa pobre mulher, que afinal tem os R$3 mil na conta bancária para pagar o cabelo, sem falar na mão de obra. Eu não tinha comentado ainda, mas um megahair caprichado não sai por menos de R$3 mil.
Sou tomada pelo mal estar de imaginar uma baixinha e gordinha horrível de cabelão. Os cabelos lindos; ela horrível. Será que o problema é o cabelão não melhorar a aparência da "pobre" mulher? Ou será que, por exibir tal aparência, ela não merece usufruir da experiência de ficar de cabelão do dia para a noite?
Sim, porque, juntando a palestra-treinamento do salão aos comentários de Nice, imagino que o megahair está em alta por se tratar de uma experiência - e não da ostentação de um cabelo de R$ 3 mil, como se fosse um diamante. Particularmente, nunca tinha pensado "puxa, que cabelo lindo, deve valer uns R$ 3 mil". Será que vou passar a pensar, agora?
Mas é aí que eu queria chegar. A "experiência" de ficar com os cabelos compridos do dia para noite só é uma "experiência" porque ninguém fica com os cabelos compridos do dia para a noite. Nem na Índia, de onde vêm os fios usados nos salões de beleza. Os cabelos que Bebeth colocará amanhã, dando adeus ao chanel de bico platinado, demoraram anos para crescer na cabeça de... chamemos de Anjali a indiana que cortou os seus cabelos em um templo na cidade de Chennai.
Bebeth ficará apenas três meses usando os cabelos que cresceram por anos a partir do couro cabeludo de Anjali. Depois desse período, ela já avisou à Nice, mudará de visual novamente. Acho difícil que, pelo menos uma vez nestes três meses, talvez quando estiver com insônia por causa da TPM, Bebeth não pense em Anjali.
Cabelos crescem de 1 a 1,5 centímetro por mês. Em média, uma pessoa tem, aos 25 anos, entre 100 mil e 150 mil fios de cabelo (Bebeth e Anjali, ao contrário de Nice, são jovens, portanto estas estatísticas lhes servem). Os cabelos indianos não são distribuídos para o mundo todo apenas porque são fortes, lisos e virgens de tinturas e outros processos químicos. É porque são baratos, muito baratos. Anjali não ganhou nem uma rúpia por 40 centímetros dos seus 150 mil fios de cabelos fortes, lisos e virgens, que demoraram três anos para crescer, porque os ofereceu a uma divindade.
Anjali sabe vagamente que os cabelos oferecidos em sacrifício nos templos indianos são depois vendidos, mas não se importa. Antigamente, parece que eram usados como enchimento de colchões, e agora vão para os megahair. O que importa é que o seu ato de cultivar e sacrificar os lindos cabelos será considerado por Ganesha, o deus-menino com cabeça de elefante, que atenderá ao seu pedido. Qual terá sido o pedido de Anjali? Não, nisso Bebeth não chegou a pensar.
Bebeth teve um pouco de insônia na véspera do grande dia, o da aparição para as amigas, mas resolveu o problema com corretivo nas olheiras e duas cocas zero. Daqui a pouco, vai encontrá-las numa casa de chá em um casarão histórico no bairro do Flamengo. É a terceira vez que o grupo escolhe aquele lugar, lindo de morrer. Sempre impecável, Bebeth tem o dom de escolher roupas com caimento perfeito em seu corpo esguio. Nem usa muitas joias. É um tiquinho invejada pelas amigas, que sempre elogiam o seu estilo e esperam ansiosas por novidades.
Agora, atrasada, Bebeth entra na casa de chá e as quatro cabeças se voltam para ela.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
5/4/2013
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