COLUNAS
Terça-feira,
9/4/2013
Quando a Páscoa chega ao Sul
Celso A. Uequed Pitol
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O monge anglo-saxão Beda, o Venerável (672-735), talvez tenha sido o primeiro representante daquela figura, hoje clássica, do jesuíta perdido entre antropófagos. Homem cultíssimo, versado em latim, grego e hebraico, intérprete aprofundado das Escrituras e interessado em temas tão díspares quanto astronomia, retórica e história, vivia numa terra que muito pouco tinha a ver com seu espírito refinado. Guardava nisso semelhanças com outros homens de letras da Igreja que, por circunstâncias da vocação que escolheram, tiveram de abandonar os altos círculos intelectuais e embrenhar-se em matas e montanhas a fim de levar a Palavra aos que não A conheciam. A diferença era que, quando via aqueles seres primitivos, adoradores de divindades da natureza, vivendo nas matas em quase comunhão com os bichos e as árvores, Beda via não homens nus do outro lado do oceano que ele tinha vindo civilizar e que com ele nada tinham a ver. Via o seu próprio povo, os anglo-saxões, habitantes de um país atrasado e esquecido do Norte da Europa chamado Anglelande - um país que, hoje, atende pelo nome de Inglaterra.
Para qualquer outro na mesma condição seria fácil lamentar da sorte. Beda nunca saiu da sua ilha fria cercada de brumas, mas é inegável seu mundo pessoal era outro. Ainda que tivesse os mesmos cabelos louros, olhos azuis e força física de seus compatriotas, seu coração estava nas margens do Mediterrâneo, o mesmo mar que banhou as areias da Grécia de Aristóteles e Platão, da Itália de Virgílio e Cícero e da Palestina de Jesus Cristo. Mas aos homens do cristianismo antigo não eram dados os confortos da lamúria e da queixa. Imbuído do melhor espírito beneditino do ora et labora, dedicou-se ao estudo dos costumes e das religiões daquele povo que era, a um tempo, o seu povo e o povo que deveria converter.
Um dos interesses centrais de Beda era a Páscoa. Esta foi uma das obsessões da Igreja durante a Idade Média, dando vazão a debates duríssimos nos quais ele próprio tomou parte com o tratado De temporum ratione, A contagem do tempo. Ali Beda descreve a Eosturmonath, o mês dedicado a Eóster, deusa anglo-saxônica ligada à fertilidade e ao nascer do sol, que iniciava durante os começos da primavera do Hemisfério do Norte. Ela inicia em 21 de março e é particularmente importante no Norte da Europa, onde as durezas do clima condicionam fortemente a vida dos homens. Durante o inverno, a comida é escassa, as noites são longas, o sol pouco aparece e a neve cobre os campos, matando o gado, as plantas e tudo o mais que vive, inclusive os homens. A primavera chega e a vida recomeça: o sol aparece por mais tempo, a água já não é gelo e já não é preciso estocar alimentos: basta colher. Tudo o que estava morto revive: ressuscita.
A imagem de Eóster - também conhecida em outros povos germânicos, chamada por uns de Ostara, por outros de Auster - é representada por uma mulher com um ovo em sua mão e um coelho, símbolo da fertilidade, em sua volta. E os anglo-saxões logo perceberam que aquele Jesus Cristo que lhes era apresentado ressuscitou na mesma época. Perceberam também que ele, assim como Eóster, trazia alegria onde chegava, os mortos retornavam à vida, da água fazia o vinho e multiplicava pães: era a "luz do mundo". A identificação foi imediata. Observador atento, Beda anotou: "Agora, os ingleses designam a época de Páscoa pelo seu nome, chamando às alegrias do novo rito com o nome consagrado pelas velhas crenças". As velhas crenças seriam substituídas pela Boa Nova - o "Evangelion", em grego - e a velha Eóster, pelo filho de Deus. Mas seu nome, como disse Beda, permaneceu, como os ovos que carregava consigo e o coelho que corria à sua volta, devidamente abençoados pelo cajado dos antigos padres da Igreja. Assim, a ressurreição do Senhor passou a ser, para os primeiros ingleses, o mesmo que a ressurreição de toda a vida.
Para quem vive no lado Sul do mundo talvez isso não faça tanto sentido. Para começar, em nossos idiomas latinos o nome desta época do ano tem outra origem: é o hebraico "Pessach", que significa "passagem", e está ligada originalmente à libertação dos israelitas no Egito. Durante a Páscoa ocorreu a ressurreição de Jesus e as correlações simbólicas entre os dois eventos são bastante óbvias. Além disso, no lado Sul do mundo, a Páscoa não coincide com a chegada da primavera. Comemora, isso sim, o começo do outono, que é o começo das noites, do frio, do fim da vida. Isto, em tese, é correto. Mas, neste canto específico do Sul que carrega o Sul no próprio nome, o tempo de provação não é o outono e nem o inverno: é praticamente todo o ano. Quem vive no Rio Grande do Sul sabe, como nenhum outro brasileiro, o que é o verão abrasador, a umidade maldosamente unida ao calor, a falta de chuvas ou o excesso delas, as plantações destruídas, as casas destelhadas. Aqui, a própria primavera não é tempo de florir e de viver, e sim de doenças, mal-estares,dias que começam congelantes e terminam quentes, de inconstância, de dificuldades. É isto o que antecede o tempo da Páscoa. Quando Março chega, já suspiramos de alívio por termos passado - sobrevivido! - mais um verão. Em breve, a fúria do tempo cessará. As chuvas aumentam a frequência e diminuem a intensidade, tornando-se agradáveis presentes do céu e não tormentosas causas de desgraças. Ao mesmo tempo, ainda não começaram as rajadas de vento que atravessam a Patagônia e nos atingem, sem dó nem piedade, cobrindo os campos de geada, os picos de neve e a vida dos pobres e desvalidos de durezas. Se, para T.S. Eliot - em todos os sentidos, um homem do Norte - abril era o mais cruel dos meses, para o homem deste Sul este é único mês que não é cruel. A Páscoa no Sul é o tempo em que, talvez pela única vez no ano, podemos realmente experimentar a alegria de viver. É o que aprendemos desde pequenos. Nossas memórias infantis da Páscoa são as das primeiras manhãs de ar fresco, quando, em crianças, corremos para o quintal e encontramos os ovos com que passamos o dia, ao ar livre, aproveitando a amenidade do tempo, a beleza do dia, a grama mais verde do ano, o fruir de tudo. E, pela primeira vez, compreendemos, da mesma forma que os anglo-saxões de Beda, que o mundo regenera e que nem tudo é dor e tristeza.
Celso A. Uequed Pitol
Canoas,
9/4/2013
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