COLUNAS
Terça-feira,
21/5/2013
Todas as Tardes, Escondido, Eu a Contemplo
Duanne Ribeiro
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Todas as Tardes, solo de dança interpretado por Sílvia Geraldi, ocorre na antesala dos relacionamentos. A comunicação de que a atração existe, a negociação para o avanço, a sinalização de que se está satisfeito: os movimentos de um jogo de tabuleiro, cálculo e emoção, emoção no cálculo e cálculo na emoção, percebidos pelo ponto de vista de um dos dois jogadores; ele, para quem o outro é uma janela aberta, porém uma janela aberta para o quê. No espetáculo, a coreografia descontextualiza gestos e põe a nu as tensões; e o texto, as poucas falas, descreve a paixão - que pretendemos explosiva, romântica - mais travada, mais engatinhante, mais incerteza.
A montagem foi realizada no Centro Cultural São Paulo, em abril. Dirigida por Mariana Muniz, é baseada livremente no livro A Invenção de Morel, de Adolfo Bioy Casares, em que um homem, isolado em uma ilha, esquecido da convivência humana e fugindo da justiça por conta de um crime do qual se diz inocente, é surpreendido por visitantes repentinos. Entre eles, uma mulher que exerce forte atração sobre o fugitivo. Abandonando precauções, ele quer conhecê-la, e tropeça em palavras e engenhos nessa aproximação. O título da peça surge desse encontro temerário:
"Contempla o pôr do sol todas as tardes; escondido, eu a contemplo. Ontem, hoje, novamente, descobri que minhas noites e meus dias esperam por essa hora. A mulher, com a sensualidade de uma cigana e com o seu lenço de cores, demasiado grande, parece-me ridícula. Entretanto sinto, talvez um pouco de brincadeira, que, se pudesse ser olhado um instante por ela, lhe falado um instante, afluiria de uma só vez o socorro que o homem tem nos amigos, nas namoradas e nos que estão no seu próprio sangue."
Todas as Tardes, no entanto, não é e não se pretende uma transposição direta do livro. Nem cenografia nem texto fazem referências expressas à Invenção de Morel. O folheto de divulgação nos avisa, apenas. É menos na narrativa e mais no núcleo sentimental da obra de Casares que se inspira o espetáculo. Assim, tanto o receio da própria imagem - "(...) minha enorme dificuldade seja momentânea: vencer a primeira impressão. Esse falso impostor não me derrotará" - quanto a dificuldade do primeiro contato - "eu me tinha colocado na obrigação de lhe falar hoje mesmo. (...) Dizer algo era um expediente alarmante. Nem sabia se teria voz" - entre outros elementos, transparecem no corpo e nos movimentos da atriz, formando não uma história linear, mas situações.
Dança na Fronteira
Sílvia contracena com três objetos de metal, molduras retângulares e vazias, cinzentas e com rodinhas. O maior digamos que tenha dois metros; os demais possuem um metro ou menos. Estão no fundo do palco; mais a frente está largado no chão um gravador. Os dois elementos cenográficos se relacionam com as duas cenas fundamentais de Todas as Tardes. Na primeira, a mulher trata do flerte; na segunda, ela dança no limiar.
O gravador é ligado e emite uma fala no estilo da autoajuda e monótona: como se portar quando flertamos com alguém. A atriz repete as fases gravadas fora do tempo, mudando pouco ou nada o que é dito. Os dois discursos soam ainda mais mecânicos. Decretam: o flerte é como um tema único a partir do qual uma orquestra faz múltiplas variações - e essa tema único diz nada além de: você me interessa. Fixe, por um tempo maior do que o da curiosidade momentânea, o olhar na pessoa-alvo. Interrompa-o de tempo em tempo e volte a dar atenção ao seu objeto de desejo. Se não conseguir chamar atenção, reinicie o processo. Vê-se, há pouca fantasia e encanto em dizer dessa forma - a sedução torna-se mais algo do campo de estudo de um comunicólogo, fria, objetiva.
É essa mesma paixão métodica que vemos quando a mulher, de costas para nós, de pé, forçando o corpo incomodamente para o lado, gira uma mecha de cabelo nos dedos. No cotidiano, eis um gesto que é às vezes sinal de nervosismo e às vezes um tique gracioso: aqui apreendemos nele o que há de tenso. Também temos o senso desse racionalismo na sequência em que a dançarina como que não representa com o corpo inteiro, mas dando acento a determinadas partes dele; cobrindo o rosto com a saia, é só perna, contorcendo-se no chão, é só bunda. Um baile de frações corporais específicas, que me fez pensar no apuro das vestimentas, no que querem esconder ou ressaltar, com efeitos projetados.
O amor aqui não é, deste modo, o arrebatamento de Romeu e Julieta. É uma faísca e os nossos esforços subsequentes para animá-la e torná-la um incêndio. Encontramos, em A Invenção de Morel, um trecho que parece consonante a essa ideia:
"Depois de tomar banho, limpo e mais desordenado (por efeito da umidade na barba e no cabelo), fui vê-la. Tinha traçado esse plano: esperá-la nas rochas; a mulher, ao chegar, me encontraria absorto no pôr-do-sol; a surpresa, o provável receio, teriam tempo de se transformar em curiosidade; mediaria favoravelmente a nossa comum devoção à tarde; ela me perguntaria quem sou; ficaríamos amigos..."
Ela me encontraria absorto no pôr-do-sol... existe aí uma teatralidade, uma construção de cena avessa ao romantismo pueril.
Noutro momento, a intérprete baila com as molduras de ferro. Ela os distribui em locais distintos; dança ao redor, se escora na borda, desliza pelo palco. Quero entender que os objetos são as janelas a que me referi em metáfora do primeiro parágrafo - o outro. O indivíduo que circundamos em perseguição, no qual nos apoiamos e observamos o que há no fundo, com o qual avançamos. É sempre à beira deste sujeito que a dança ocorre. Ela não atravessa, não passa de um lado a outro. Fronteira.
Há alegria quando enfim a vontade se concretiza, uma alegria ingênua, saltos infantis e sorriso. O você me interessa em um novo desenvolvimento melódico, um você me fez bem. E aí os atos nos quais nos escondemos: arrumar a camisa sobre a calça, girar o anel no dedo, mexer a chave no bolso. As frases pelas quais nos lançamos com esperança: "Que bom que você gostou!"; "Seria ótimo ir com você!". Todas as Tardes desenha as oscilações do sentimento, conforme deixamos de lado o que é seguro e - similar ao homem foragido não mais recluso na ilha - nos aventuramos.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
21/5/2013
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