COLUNAS
Sexta-feira,
18/1/2002
Uma passagem para a Cachemira
Rafael Azevedo
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O problema da Cachemira é antigo, e tão insolúvel quanto todos os que assolam há milênios essa região do globo. Envolve irracionalidades imbecis, orgulhos antigos e preconceitos bestas, crenças intolerantes e muita desinformação e desconhecimento de ambas as partes - como todos os conflitos deste tipo que o mundo viveu no último século, da Irlanda do Norte à Faixa de Gaza. A Cachemira, em inglês Kashmir, é um território dividido entre dois países - metade está no noroeste da Índia, e metade no leste do Paquistão - muito louvado, ao longo dos séculos, por inúmeros poetas e escritores, muitos deles ocidentais (entre eles, claro, Kipling), por sua incrível beleza natural - sua paisagem consiste basicamente de grandes planícies verdes, pontilhadas de lagos azuis e cercadas por montanhas altíssimas de cumes sempre brancos. A origem do conflito que a estremece agora, e faz com que estes dois países de tão grande importância na região, muitíssimo populosos, e cujos exércitos possuem tecnologia nuclear, estejam disputando esse pedaço de terra, remonta à 1947, quando a Índia oficialmente tornou-se independente do então-Império Britânico.
A independência seria feita através de uma federação de inúmeros estados, pequenos reinos - mas diante de uma evidente cisão entre as populações muçulmanas e hindus da Índia, que nunca se bicaram (desde as cruéis invasões das hordas moguls que dominaram os indianos por séculos com mão de ferro, mas nos deram belezas como o Taj Mahal) , M. A. Jinnah, o "inventor" do Paquistão, sugeriu que os rajás, marajás, e inúmeros regentes que fizessem parte do que era a Índia Britânica, optassem por pertencer a uma federação de estados islâmicos - separados do estado da Índia, secular, mas de população predominantemente hindu. Formaram-se assim dois estados onde antes havia a grande Índia dos ingleses. Os muçulmanos emigraram em sua grande maioria para os territórios onde se sentiriam mais confortáveis professando sua religião, já que surgiram rumores de que o governo indiano reprimiria todas as minorias não-hindus. Isto, futuramente, revelou-se de todo falso - tanto que hoje a Índia é uma das democracias orientais que atingiram a secularização de maneira mais admirável, possuindo em seu território inúmeras minorias, entre elas muçulmanos, que lá vivem muito bem (existem mais muçulmanos na Índia que no Paquistão, em termos numéricos.) A Leste, um pequeno enclave no meio do território indiano, Bengala, ou o país que hoje se conhece como Bangladesh, com população muçulmana, também optou por separar-se da Índia, tornando-se na época o Paquistão Oriental. Vale ressaltar que, na mais típica tradição oriental, essas escolhas foram feitas sem qualquer critério ou consulta do grande público - foram decisões pessoais das autoridades absolutistas que mandavam e desmandavam no povo local. Assim, o surgimento de conflitos seria inevitável - e foi o que se deu no território da Cachemira. O rajá local, Hari Singh, hindu que reinava com uma corrupta mão-de-ferro sobre uma população muçulmana, aliado por uma corja de burocratas ineptos, optou por permanecer integrado à Índia, por saber que caso seu reino fosse entregue ao Paquistão ele perderia seu poder e poderia até mesmo correr risco de vida. O Paquistão então insuflou, sem muito esforço - impressionante a volatilidade dos muçulmanos, e a facilidade que líderes demagogos encontram para motivar suas massas - a população contra o governo indiano, e iniciou a primeira guerra na região. Hordas de guerreiros islâmicos da etnia pashtun foram trazidos do Afeganistão para auxiliar na "guerra santa" (transportados e armados pela Grã-Bretanha), formaram-se inúmeros grupos de militantes, que passaram gradualmente da luta pela independência e auto-afirmação de seu povo à defesa da pura e simples integração com o Paquistão. Este, ao contrário da Índia, não soube aproveitar um dos grandes legados dos britânicos ao subcontinente - a democracia - e acabou se tornando uma ditadura de direita, ao estilo de uma republiqueta de bananas sul-americana, cujo regime militar apoiava sem pudores qualquer grupo, fundamentalista ou não, que lutasse pela liberação (leia-se anexação) do território da Cachemira. Seguiram-se décadas de tensões na região, atentados horríveis cometidos por grupos paramilitares de ambos os lados (mas mais do lado paquistanês, verdade seja dita), conflitos constantes entre o povo e o que chamam de "forças de ocupação" indianas, e mais uma guerra alguns anos mais tarde. E não é que hoje, parece que o caldo está, de novo, prestes a entornar? Os atentados de dezembro ao Parlamento Indiano foram notoriamente cometidos por organizações terroristas da Cachemira paquistanesa, mais notadamente o Lashkar-e Toiba e o Jaish-e Mohammed, grupos que o presidente (leia-se General) Musharraf do Paquistão se comprometeu (como o Arafat prometeu que faria na Palestina) a acabar desde que se tornou um aliado americano na "Guerra contra o Terror". Congelou algumas contas bancárias, prendeu alguns assassinos notórios - mas parece que isso não é suficiente para a Índia, que o acusa de ainda financiar, por baixo do pano, esses grupos. Exatamente a mesma acusação que Sharon faz a Arafat e, agora, parece ter provas, depois que a polícia israelense apreendeu um navio vindo do Irã lotado de armamento pesado endereçadas à Autoridade Palestina em Gaza. Recentemente, Musharraf fez um pronunciamento considerado histórico pelos americanos, na TV, onde se comprometeu a adotar uma posição firme contra os grupos terroristas da Cachemira. Seguiram-se mais prisões, e mais medidas, tais como a regulamentação das madrassas, escolas islâmicas que, manipuladas por mulás inescrupulosos, estavam se tornando verdadeiras "linhas de montagem" onde crianças têm seus cérebros "lavados" e são transformadas em terroristas internacionais, acreditando piamente serem mujahiddin a serviço de Allah na jihad contra os kaffir.
Não sei não, mas talvez a melhor decisão ainda seria fazer um plebiscito com a população da Cachemira, organizado por uma entidade neutra, para determinar que rumo o conflito deveria tomar. É necessário tirar o conflito das mãos de políticos, sejam eles oficiais (os governos da Índia e do Paquistão) ou clandestinos (os grupos armados que se auto-intitulam representantes do povo) - pois como bem sabemos no Brasil, políticos dificilmente servem para solucionar problemas; pelo contrário, quase sempre a única utilidade deles é criar estes problemas.
Qualquer tipo de fundamentalismo é, fundamentalmente (com o perdão do trocadilho), idiota. Qualquer tipo de luta armada, seja ela de motivação nacionalista, separatista, ou qualquer outra -ista que as estreitas mentes humanas conseguirem inventar, que atinja inocentes alheios à esta luta, está errada, é uma injustiça ainda maior que a injustiça que supostamente tenha motivado esta "luta" e deve ser combatida e coibida, por todos os meios possíveis, pela comunidade internacional. O ETA, o IRA, Al-Qaida, as FARC, o exército revolucionário de Fidel, as guerrilhas sul-americanas que se "opuseram" às ditaduras militares, todos são - ou foram - movimentos criminosos liderados por bandidos assassinos e que custaram a vida de inúmeros inocentes. Parece algo óbvio, mas nesses tempos em que pessoas de intelecto limitado e julgamento precipitado se pronunciam a favor de bin Laden e seu ato bárbaro no World Trade Center - especialmente neste nosso Brasil bananil - é preciso ficar repetindo isso, como um mantra, na vã esperança de espantar os maus espíritos da burrice e da intolerância.
Rafael Azevedo
São Paulo,
18/1/2002
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