COLUNAS
Quarta-feira,
5/6/2013
Amor (in)Condicional
Marilia Mota Silva
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'Não insistas comigo', respondeu Rute, 'para que eu te deixe e me vá longe de ti. Aonde fores, eu irei; aonde habitares, eu habitarei. O teu povo é meu povo, o teu Deus meu Deus. Na terra em que morreres, quero também eu morrer e aí ser sepultada. O Senhor trate-me com todo o rigor, se outra coisa, a não ser a morte me separar de ti!'. Ante tal resolução, Noemi não insistiu mais". "Livro de Ruth", Velho Testamento
Na revista de domingo do Washington Post há uma seção chamada "Date Lab". O jornal seleciona dois candidatos a partir de suas compatibilidades e demandas expressas no questionário de inscrição e promove um encontro entre eles, um jantar em restaurante conhecido. Na edição seguinte, a revista traz uma página com fotos do casal durante o jantar, e o relato de ambos, avaliando o encontro. Muitas vezes os dois falam da noite agradável que tiveram, a descoberta de afinidades importantes, o quão confortáveis se sentiram um com o outro mas, por isso mesmo, preferem não ir adiante no romance, não sentiram frisson, borboletinhas no estômago e, sendo assim, não acreditam que aquele ou aquele seja the one, a alma-gêmea.
Do outro lado dessa visão romântica, há o número crescente dos que preferem os algorítimos para encontrar amor ou companhia. Sites de encontro se especializam e prosperam continuamente. Tem funcionado para muitos, ao que parece. Outros, excitados com o plantel sempre renovado de possíveis romances, mesmo tendo encontrado o "par perfeito", voltam a vasculhar o site, a perguntinha inconfessável lhes cutucando a mente: será isso o melhor que eu posso "pegar"? Vício do consumismo que nos empobrece a vida.
Entre a visão pragmática ou cínica e as fantasias românticas que persistem em nossos dias, o filósofo inglês Simon May, professor no Kings College (Londres), propõe que repensemos o amor. No livro Love: A History ele investiga como "essa força universal de desejo e devoção tem sido interpretada ao longo dos séculos" para identificar o que foi que deu errado, porque há tanta frustração e desencontros no amor.
Quinze dos dezessete capítulos dedicam-se à genealogia da tradição ocidental: a Bíblia dos Hebreus, Platão, Aristóteles, Lucrécio e Ovídio, os primeiros teólogos cristãos, os trovadores da Idade Média, Espinosa, Rousseau, Schlegel e Novalis, Schopenhauer, Nietzsche, Freud e Proust. Há ausências notáveis como Dante, Camões, Shakespeare, Tolstói e outros, mas não é do livro em si que gostaria de falar e sim, e apenas, de um de seus temas principais, que propõe uma reflexão interessante: As crenças falsas que ainda prevalecem em nossa visão do amor. Simon May propõe que nos livremos dessa carga de mistificação que só tem nos causado prejuízo.
Acreditamos que o amor é incondicional, que não busca nada em troca, que não depende do valor ou das qualidades do outro. O amor dos pais pelos filhos é o exemplo emblemático. Acreditamos que o amor é altruísta, quer apenas ver feliz o bem-amado. É benevolente e harmonioso, um céu de paz. É para sempre. Se não for, não era amor.
Isso não existe, diz o filósofo. Seria muita arrogância nossa pretender que o amor tivesse essas virtudes. Todo amor humano é condicional. Nós amamos os outros por causa de alguma coisa, sua beleza, bondade, poder, porque são de nossa família, porque temos afinidades. Mesmo Jesus parece sugerir que o amor de Deus pela humanidade não é necessariamente incondicional. No Juízo Final, só os justos vão para o céu; os que não agiram bem vão para a punição eterna.
Tudo o que temos é amor condicional. Sabendo disso, talvez a gente não desista das pessoas que amamos ao primeiro desentendimento, à primeira frustração ou quando o relacionamento passa por fases áridas e nos sentimos vazios de amor, sem sinais da antiga paixão.
E finalmente, Simon May sugere: vamos liberar o amor romântico e conjugal das expectativas sexuais. Uma pessoa pode ter tremenda ligação erótica com uma pessoa e ter sexo só de vez em quando. O sexo é apenas um dos laços e deleites do amor erótico e não o alicerce fundamental. Se o sexo não vai muito bem ou se o desejo não é mais tão urgente isso não significa que nós amamos com menos urgência e que é tempo de trocar de parceiro. O objetivo de recalibrar nossas expectativas não é diminuir a importância do amor romântico, mas fazê-lo mais bem sucedido, mais realista. A amizade deveria ter uma parte igual em nosso desejo de amar e ser amado e amor é muito mais que romance.
Se todos precisamos de amor é porque todos precisamos nos sentir em casa no mundo; sentir raízes no aqui e agora; sentir que nossa vida tem consistência e validade; precisamos aprofundar nossa sensação de ser. É o que chamo, Simon May diz, de raízes ontológicas; nós amamos o que nos surge como um poderoso porto para o que julgamos mais essencial em nós, o que nos oferece um lar ontológico.
Ontologia à parte, frases de amor eterno e incondicional, como "amar é nunca ter que pedir perdão", ferem cruelmente ouvidos sensíveis à empulhação.
E, pensando bem, não há nada mais incômodo do que amor que não pede retorno.
Marilia Mota Silva
Washington,
5/6/2013
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