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Terça-feira, 22/1/2002
Caiu na rede é theremin
Rafael Lima
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Toque theremin

“Tell me what can a poor boy do
'Cept for sing for a rock 'n' roll band”

Jagger/Richards, Street fighting man

O cartãozinho pregado na cortiça da loja de CDs dizia: “Precisa-se de baterista sem experiência para banda de death metal, com influências de trash e hardcore”. Ah, a energia juvenil do rock alternativo. As duras palavras de ordem em cada refrão idealista. O profissionalismo mambembe dos festivais. Como é bom retornar a esse universo, agora sem o compromisso adolescente de decorar as letras, de conhecer o nome das bandas, de gostar da música que está rolando, qualquer que seja – contanto que barulhenta. Eu quase falaria em saudades, não tivesse tido a chance de sentir as mesmas vibrações, ver as mesmas pessoas de barbicha e calça cargo 3 números maior, e ter meus tímpanos abalados ao comparecer à noite de terça-feira passada do projeto Humaitá Pra Peixe, no Espaço Cultural Sérgio Porto.

(Humaitá Pra Peixe foi o nome infame que os fundadores do CEP 20000 escolheram, frisam eles, “numa mesa de bar do Baixo Gávea”, para um projeto de festival dissidente, nascido a meio caminho, mais focado em música e bandas do que o Centro de Experimentação Poética 20000 – espécie de jogral pós-moderno organizado duas vezes por mês no mesmo espaço, de particular repercussão na cidade de São Sebastião, ou, quem sabe, até mesmo no Brasil?, o suficiente para ter produzido um CD-amostra daqueles que vinham encartados na Revista Trip antes da recente mudança gráfica. Alguém aí falou em dinheiro da prefeitura? Alguém aí gritou “vagabundos! Vagabundos, isso sim!” Alguém aí murmurou consigo mesmo, “genial, genial”? Calma, meu povo, calma que isso é apenas um esboço de segundo parágrafo...)

O ponto a se focar aqui é o seguinte: por causa do patrocínio constante (calma, não falem ainda em malversação do dinheiro público) ao longo dos anos – nesse, contou até com parceria do recém chegado Clear Channel -, de uma atraente pré-disposição dos moradores deste balneário para o consumo & divulgação boca-a-boca de novidades culturais (quaisquer novidades) e do charme cool de conhecer aquela banda que é o máximo, mas que só não chegou ao mainstream por causa da tirania dos meios de comunicação, da uniformização da cultura e, sobretudo, da globalização (fim da ironia, voltamos à programação normal), tanto o CEP 20000 (e seu filhotinho ainda mais infame, CEP 20mílsica) quanto o Humaitá Pra Peixe conseguiram, ao longo dos anos, além da sobrevivência, notoriedade suficiente para amealhar colunas em jornais de grande circulação & outros indicadores de confiabilidade e respeitabilidade. Se a causa disso foi a qualidade dos experimentos conduzidos no laboratório ou o imenso hype explorado em cima do déficit cultural da classe média e da fome da indústria do entretenimento por novidades, feito por gente que entendeu timtim por timtim as teorias de Antonio Gramsci, aí já fica mais difícil afirmar. Tanto que eu já estava disposto a encarar uma pesquisa de campo para descobrir por mim mesmo quando o Brandão me passou um flyer convidando para o show de sua banda ao nos encontrarmos casualmente num bar, de madrugada.

Rodrigo Brandão tinha sido amigo de sala de colégio por mais tempo que uma década de distância consegue apagar da memória. Ia quase todos os dias com uma calça de moleton cinza, manchada na perna direita, e uma camisa preta-máquina-de-lavar com logotipo do Batman. Desconfio que se penteava com um ventilador, como diziam do Paulo Mendes Campos, e de vez em quando cruzava os braços sobre a mesa e dormia de babar, com a maior facilidade. Apesar dele ser o típico aluno de segunda época, e eu, quase seu exato oposto, tínhamos o gosto por histórias em quadrinhos em comum – tanto que certo ano chegou a me convidar para compor uma chapa para o grêmio, experiência que despertou meu descrédito para com a atividade política. Mas isso é outra história, vocês nem queiram saber...

E com a palavra, os nossos astros
É muito fácil, dever de casa para leitor de orelha do Olavo de Carvalho, criticar a dissonância entre o discurso e os objetivos da chamada cena indie, colecionar seu arsenal de frases feitas - que faria Cláudio Julio Tognolli tiritar de nervoso (os discos eternamente em finalização, a mistura inusitada de ritmos, a onipresença do bom humor) - ou fazer ridículo da falta de articulação verbal de suas estrelas. Sendo assim, para evitar covardia, vou me limitar a reproduzir, repito!, reproduzir textualmente, alguns trechos do fanzine-prospecto de divulgação do 11ª Huimaitá Pra Peixe - Edição Cardume, distribuído no Sérgio Porto – que, por sua vez, devia estar se revirando no túmulo, ele, que nem Beatles tolerava...

Max [Viana] ainda não tocou solo pro lado de cá da ponte aérea. Mas tem feito uma jam todas as terças em SP. Segundo o próprio, tem lotado.

[Academia Brasileira de Rimas]
HPP: Como fica a questão do português e da métrica nas rimas de vocês?
Napoli: a questão do português é bem importante. É como se você descobrisse o “manual de instruções” da língua portuguesa... isso é muito louco!
Akin: Procuro sempre ser bem claro, uso metáforas de forma direta para que outros me compreendam bem.

[B.Negão, pronuncia-se Benegão]
HPP: E as músicas, como estão?
B. Negão: Elas tem o lado espiritual e o lado social, mas sempre com bom humor. É uma visão de como está o mundo (...) HPP: Você vai cantar no dia da Academia Brasileira de Rimas. Você encara uma batalha de freestyle com os caras?
B. Negão: Deus me livre! Eu nem me meto nessa parada de freestyle, porque isso é uma arte que você tem que ficar se dedicando à vera. E eles são de uma galera que vai fundo: estudam mais a coisa da matemática, o que a galera chama de rimática.

[sobre o som do Paralelo 8]
Um som pop que, ao contrário da média, é consistente, denso com uma certa dose de eletrônico e dub, o que cria um clima cheio de texturas, complementadas por letras positivas, acessíveis e não descartáveis.

“Meu lance é um samba pesado e um rock introspectivo, ambos permeados de uma baião devidamente envenenado.”
[China, ex-Sheik Tosado]

Atenção admiradores dos poetas e das melodias com base forte, clima denso no palco e agitação sensitiva: está chegando a vez de Cabelo (...) O estilo? A fusão natural contemporânea. “A nossa geração é isso: a mistura de tudo”

“Hoje o que mais falta na música brasileira e em tudo o mais é a verdade. Isso é uma coisa que eu prezo muito no meu trabalho – tanto que a minha antiga banda se chamava Banda Vera. Então não tem mais mais. O que eu faço é isso aí mesmo.” [Rogê]

[Bojo]
HPP: Vocês são experimentalistas ou só bebem na fonte do experimentalismo?
Bussab: Acho que sim. Chama a gente de experimental o temo todo, então eu acho que sim. Mas a gente não tem compromisso nenhum com hermetismos. Acho um saco música que eu não entendo.

E o show? E o show?
Quando vi a bilheteria em forma de submarino, fiquei pensando no ervanário público, a despeito do belo resultado cenográfico. Dentro do reduzido espaço (onde já se viu show indie em lugar grande?), a decoração era dada por uma cortina de garrafas de água mineral cheias de corante, compondo um pano de fundo para o palco; do teto também pendiam ventiladores rotativos que mantinham birutas em forma de rabo de peixe verde permanentemente cheios, como balões. A iluminação correta, somada aquele monte de peixes no teto criavam a ilusão de que estávamos dentro de um imenso aquário. Num canto, divisei o veterano jornalista Jamari França, com quem me solidarizei imediatamente: 50 anos na cara, uns 30 de crítica musical, tendo que agredir os tímpanos ali para ganhar seus caraminguás... Feitas as apresentações de praxe, palmas etc., finalmente entra no palco Leela (pronuncia-se: Líla).

Autodefinida guitar band: baixo, 2 guitarras - base e solo - e bateria (onde foi que eu vi isso antes?). Durante a introdução, o Brandão é obrigado a trocar de instrumento e quase perde o embalo. Tenho a impressão que todo músico de rock leva umas guitarras mal afinadas para o palco, só para poder trocar durante a música. Com roda de chorinho ou orquestra, estranhamente, isso não acontece isso (podem conferir). Leela é aquela história, os amplificadores cuspindo o som de guitarras sobrepostas com a voz da Bianca Jhordão por cima em letras... bom, eu fiquei um pouco constrangido com a qualidade das letras. Sabe, esse negócio de ficar rimando verbo no infinitivo é muito primário. Ainda mais os terminados em _ar. Mas quem está ali para prestar atenção nessas coisas, quando a imprensa já se preocupou em rotular Bianca como musa do underground? As madeixas loiras, o vestido preto & coturnos contribuíam para o biotipo, mas eu sentia falta de alguma coisa... Ah, as tatuagens. Bianca não tem tatuagens cobrindo os braços. Nem os ombros.

O show segue sem maiores sustos, mesmo quando o povão é provocado ("Ouvi dizer que o público da Zona Sul tem fama de frio, de não pular"). Algum head-banging do Brandão, coreografias simples e de efeito, o erotismo delicado nos gestos da Bianca. Rock 'n' Roll, oras. Até que chega o momento nobre: sobe ao palco o convidado Fausto Fawcett. O beatnik do Cervantes. O inventor da louraça belzebu, louraça satanás, louraça lúcifer. O comedor de vírgulas, o maior aglomerador cibernético de desconectos adjetivos substantivos advérbios em frases de forte impacto, impacto terremoto, impacto cataclisma, impacto tectônico de babilônia-Copacabana. A banda fica só numa base para ele improvisar ao microfone. A história, claro, envolve além da sua pessoa, uma lourinha com arrogância de xerife entrando em saloon - mas o bicho pega quando a (ins)piração acaba e ele permanece no palco para um dueto. Ver aquele cara todo sem jeito, baita pança de chopp, feliz como gordo de camiseta, óculos de fundo de garrafa e o rosto esburacado como o mapa da Lua fazendo duo com uma loirinha de 1,60m é algo inesquecível que só se encontra no submundo underground alternativo (eita! Diarréia verbal é contagiosa!).

Eu já estava me dando por satisfeito quando surge, do nada, no meio do palco, um theremin. Para quem não sabe, theremin é um instrumento musical inventado na década de 20 que andou fazendo sucesso na sonoplastia de filmes B de ficção científica da década de 50 e nas bandas psicodélicas dos anos 60 e 70, particularmente Led Zeppelin. Assemelha-se a uma caixa preta com uma antena de um lado e uma alça do outro. Ambas são emissoras de ondas eletromagnéticas, e o interessante é que é o único instrumento que se toca sem encostar a mão: a antena controla a modulação grave-agudo e a alça, o volume; a impressão é a de que se está dedilhando uma harpa invisível. Lógico que a Bianca explora muito bem esses movimentos, ora enérgicos, ora sensuais, num número empolgante. Uivos e apupos ao fim. Mais uma pérola que não se pode encontrar domingo de tarde na Tv.

Off the records
Depois do show ainda encontrei dois amigos por ali, um deles de férias no Rio. Quem leu este texto até aqui deve ter estranhado porque eu comecei falando "na banda do Brandão", e na descrição do show, só dava Bianca pra cá, Bianca para lá. Convenientemente, ela explora a fama que o rótulo pregado pela mídia lhe trouxe e se planta no meio do palco, no foco dos holofotes. Em termos de imagem, Bianca é, pelo menos, metade de Leela. O que me deu uma ótima idéia para colocar pilha no Brandão:

- A gente abre o jornal e diz, "a banda da Bianca"; você me passa o e-mail dela e pede para que eu escreva "A/C Rodrigo". Escuta aqui, afinal de contas quem é que manda nessa banda?

Mas o chato ao invés de se irritar ficava rindo. Comentei sobre a chance de que eu escrevesse alguma coisa sobre o show para o Digestivo e ele me agradeceu efusivamente. Pá de cal:

- Mas vou falar mal.

E o maldito continuava a rir. Ao fim, o clima fraternal, arrá!, foi registrado nessa "foto de campanha" pela uma câmera digital do um dos amigos (o outro? Estava apertando o botão, pô!). Porque quem sabe, faz ao vivo.
Brandão, Bianca, eu, Ram


Rafael Lima
Rio de Janeiro, 22/1/2002

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