COLUNAS
Sexta-feira,
26/7/2013
A sedução da narrativa
Marta Barcellos
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O "era uma vez..." já era. Foi substituído por "baseado em fatos reais!" Grandes narrativas? Imagina, ninguém mais lê Guerra e paz. As narrativas agora são fragmentadas ou performáticas, como os novos tempos, como manda a tecnologia, como afinal é o sujeito contemporâneo. No lugar do romance do século XIX, que morreu e morreu, a antinarrativa.
Será?
Se você intui que não é bem assim, mas anda envergonhado de admitir que gosta de ler uma boa ficção (se é flagrado, jura não se tratar de realismo), vá ao cinema. Não, não é para constatar que as tramas bem urdidas ainda imperam na linguagem da telona, mas para se deliciar com uma ode à narrativa tradicional.
Em Dentro da casa, o diretor François Ozon vai além da homenagem distanciada e aponta também caminhos para a narrativa contemporânea, essa que parece constrangida de começar com "era uma vez" e por isso se disfarça de história "real" ou sem narrador. Há camadas narrativas para todos. Sem a arrogância das piscadelas para os eruditos (raramente discretas, já que autores e críticos adoram exibir sua intimidade com a alta cultura), o filme é repleto de referências e citações. Mas quem "apenas" se deixar ser fisgado pelo enredo não aproveita menos: talvez estes "inocentes" sejam os verdadeiros homenageados.
O ponto de partida é um liceu francês, mas não qualquer um: chama-se Gustave Flaubert. A tradição e a modernidade estarão em tensão todo o tempo, dando o tempero cômico, enquanto a trama, que se constrói exibindo todos os seus truques narrativos, fisga os expectadores/leitores. Não à toa o filme foi sucesso de público na França, com 1,2 milhão de pagantes, uma cifra mais próxima das comédias ligeiras do país do que dos filmes autorais de seus cineastas.
Na volta às aulas, somos apresentados a Germain (Fabrice Luchini), um professor de literatura apaixonado pelas narrativas clássicas. Corrigindo redações nas quais os alunos descrevem seus fins de semana como resumidos a pizza e televisão, aqui símbolos do mau gosto da indústria de consumo (na França, talvez pizza mais que televisão), o professor vai encontrar, e se deixar seduzir, pelo texto de um aluno, Claude, que se revelará uma espécie de duplo seu.
Aprendiz de escritor, Claude (Ernst Umhauer) senta-se sempre no fundo da sala, como seu mestre fazia nos tempos de estudante para poder observar os outros, ter o melhor ponto de vista de um narrador. Germain, que se confessará um escritor fracassado, projeta-se no aluno-escritor, e ambos acabam por construir uma narrativa fundada na tradição (thriller no cinema; folhetim na escrita): uma narrativa-crítica da classe média. Como fez Gustave Flaubert.
A figura do escritor francês paira sobre o filme. Além da fachada do liceu, seu nome está na capa dos livros indicados pelo professor, e sua obra projeta-se na personagem Esther, uma Madame Bovary moderna e igualmente entediada em seus valores pequeno-burgueses. A beleza blasé de Emmanuelle Seigner lhe cai como luva. A classe média, seus personagens anônimos e comuns, exerce sobre Claude e seu professor o mesmo efeito da burguesia sobre os escritores e artistas da segunda metade do século XIX. O mesmo misto de desprezo e fascínio que levou Flaubert a escrever Madame Bovary.
Claude "adentra a casa" da classe média por intermédio do colega de classe Raphael, estereótipo do indivíduo idiotizado pela cultura de massas. É na observação apurada da rotina de sua casa e sua família, a mãe Esther e o pai também Raphael, que se construirá a literatura de Claude.
Nota-se no filme a ênfase dada aos riscos inerentes à liberdade democrática que caracteriza a escrita. O professor, a quem caberia a autoridade do enunciado numa relação hierárquica, perde o controle sobre seu aluno aprendiz, sobre o que ele escreve, sobre quem vai ler seus capítulos. O perigo está no ar. O valor atribuído à escrita é tão grande na trama que sua prática determina todos os rumos.
Quando Germain, assustado com as consequências, orienta seu aluno a sair "da casa", que é sua fonte de inspiração -, Claude se nega. E o culpa pelo estímulo literário: "Foi ideia sua". O professor continua lhe emprestando livros, e tenta manter-se como crítico distanciado da trama através de lições de narratologia. As classificações e os esquemas narrativos, que remetem às primeiras teorias de Aristóteles, são utilizados como tentativa de enquadrar a escrita produzida pelo pupilo, numa referência à ânsia classificatória que acompanha os estudos literários desde a época de Flaubert.
Germain busca, em vão, disciplinar Claude com a mediação do seu saber e questionamentos sobre estilo narrativo. Ora, se ele quiser satirizar o comportamento da família, estará criando uma paródia! Zombar dos personagens, como se fosse superior a eles, é fácil, diz o professor: "Difícil é não julgá-los, como fez Flaubert". Claude, ao mesmo tempo que aprende, ironiza cada lição. Induzido a adotar o gênero realista, escreve o capítulo seguinte repleto de números e descrições.
As técnicas de manipulação da narrativa escrita são potencializadas pelos recursos do cinema: também Ozon parece seguir e rir das lições, ao utilizar uma trilha sonora de suspense quando o aluno testa o gênero de mistério, ou a diluir a imagem de Esther nas nuvens do céu quando Claude recorre à poesia para sensibilizar a personagem. "Metáforas são uma bomba atômica numa casa de classe média onde nunca entrou a poesia", diz o professor.
O desvelamento dos truques narrativos (o quadro negro chega a ser utilizado para mostrar o diagrama do conflito que prende o leitor à trama, a exemplo da manipulação utilizada por Sherazade para poupar sua vida) faz emergir a crítica contemporânea à validade das grandes narrativas realistas, já sem a função do passado de dar sentido às ações humanas.
Se a chamada crise da representação acirrou o debate entre narrativistas e antinarrativistas, Ozon de certa forma dá uma resposta pessoal à questão, por meio de sua prática artística: agradou o público e entusiasmou os críticos com uma trama linear, que lança mão de artifícios clássicos da narratologia e prende a todos pelo conflito e pelo suspense. Em vez de se encabular por estar sendo "artificial", se apropria com ironia das discussões e dos impasses que rondam as artes em geral.
Isso se dá por meio da personagem adoravelmente encenada pela inglesa Kristen Scott Thomas. Jeanne, mulher do professor, administra uma galeria de arte e incorpora o discurso afiado da contemporaneidade. Corrige, por exemplo, as novas donas do negócio (gêmeas que ela reconhece como provincianas sem gosto, que deveriam ter herdado uma delicatessen em vez de uma galeria), que lhe perguntam sobre o que a obra de uma artista chinesa representa: "Não se trata de 'representação', mas de 'apresentação'".
Só que, embora negue a possibilidade de representação do real, Jeanne é uma leitora apaixonada da literatura "realista" de Claude, a espécie de leitor que funciona como coautor da obra: ela preenche as lacunas com sua imaginação, a ponto de "ajudar" Ozon a transformar capítulos em cenas do filme. Em suas contradições, a esposa do professor personifica a crise da arte, uma arte que não quer representar, mas busca seu futuro arrastando consigo a tradição.
O nome de sua galeria, O labirinto do Minotauro, assusta os clientes, diz ela, e de seu comentário pode-se depreender tanto o temor à fera da mitologia grega quanto o estranhamento do público médio em relação à cultura erudita. A escrita hermética dos catálogos da galeria é ridicularizada pelo professor e até por ela mesma, que parece tentar se convencer sobre o valor das experiências antinarrativas.
Além da artista chinesa (que ela comenta ter nascido na verdade em Los Angeles!), criadora de imagens aleatórias no computador, outro exemplo de arte moderna seria a "pintura verbal", uma gravação na qual o artista descreve uma pintura que será destruída em seguida. "Ele está zombando da obsessão da indústria cultural com objetos tangíveis", ela defende, ao mesmo tempo em que tenta desesperadamente tornar seu "comércio viável".
A seriedade de Jeanne ao descrever a intenção de cada obra de sua galeria arranca risos da plateia atenta àquela camada narrativa, mas vale lembrar que seu discurso não está distante daquele empregado em defesa da arte conceitual. Da mesma forma, sua ironia sobre o mau gosto da classe média retratada por Claude reflete sem dúvida uma tensão ainda latente entre a cultura elevada e a de massas.
Um diálogo em torno do valor da originalidade, em tempos de reprodutibilidade da obra de arte, se destaca: questionando a verossimilhança da narrativa construída pelo aluno, ela estranha que a família retratada possua uma aquarela de Paul Klee. "Não faz sentido 'arte pura' numa casa de classe média", ela diz. Ao que Germain responde, provocando-lhe espanto: "Desconfio que é uma cópia".
A China, presente em vários detalhes da rotina da família de classe média, faz o contraponto à arte pura. A classe média se interessa por arte ou por mão de obra barata?, indaga o professor, quando vê os pais de Raphael na inauguração de uma exposição. De fato, Esther confunde decoração com arte, mas isso não impede que o narrador-aluno se encante por ela e transforme seu desprezo inicial em literatura.
Dentro da casa é um filme francês e com referências francesas, mas bem podia inspirar uma versão brasileira. Afinal, o que não falta por aqui é tensão entre alta e baixa cultura, ainda mais em tempos de ascensão de uma nova classe média. Mas que isso seja feito por meio de uma trama inteligente e ágil, como a de Ozon, e não por uma reflexão erudita ou por uma comédia global.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
26/7/2013
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