COLUNAS
Quinta-feira,
1/8/2013
De volta da Flip 2013
Eugenia Zerbini
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O que de melhor veio na bagagem trazida de Paraty, na volta da última Flip? Além da cachaça, certamente os dois livros vencedores do Prêmio Sesc de Literatura deste ano: O evangelho segundo Hitler, de Marcos Peres, na categoria romance, e Noveleletas, de João Paulo Vereza, na categoria contos. Os vencedores desse prêmio, sempre autores estreantes, são editados pela Record.
A festa de premiação, neste ano, ocorreu no espaço do Sesc em Paraty. Coincidiu com a comemoração dos 10 anos do prêmio, cuja primeira edição (2003) contemplou o romance Santo Reis da Luz Divina, de Marco Aurélio Cremasco. Publicado no ano seguinte, narra sagas familiares pontuadas por ódios e amores, da Guerra do Paraguai à era Collor. Santo Reis da Luz Divina, elogiado pelo crítico exigente que foi Wilson Martins(1921-2010), ficou entre os finalistas do Prêmio Jabuti, em 2005. Neste ano, foi publicado o romance As netas da Ema, de autoria desta colunista, ganhadora do prêmio em sua segunda edição.
A partir da edição 2005/6 é que o gênero conto foi incluído no certame, com a premiação, além do romance Hoje está um dia morto, de André de Leone, do livro de contos A secretaria de Borges, da talentosa escritora carioca Lucia Bettencourt, também vencedora dos certames de contos Osman Lins, no Recife, e Josué Guimarães, no quadro das famosas Jornadas Literárias de Passo Fundo.
Em face da qualidade dos dois livros laureados, o prêmio instituído pelo Sesc dá mostras que veio para ficar. Tratam-se de obras diferentes entre si, o que evidencia as diversas tendências da literatura contemporânea. O evangelho segundo Hitler seduz pelo inusitado da trama inteligente, bem urdida, e pela escrita corrente. Il faut pas chercher midi à quatorze heures, dizem os franceses (querer que as coisas sejam diferentes do que realmente são): em entrevista concedida à revista Época no ano passado, distribuída durante a Flip de 2013, Jonathan Franzen observa que os grandes escritores norte-americanos atuais, como Philip Roth, adotam o estilo linear da narrativa, abdicando das experiências narrativas. Ou seja, discurso claro, com começo, meio e fim. Por sua vez, André Sant'Anna, que assina as orelhas, deixa anotado que Marcos Peres, contrariando o mote de Leon Tolstoi (se quiser ser universal, começa pintando sua aldeia), foi muito além da vizinhança. Viajou pelo mundo e pelo tempo.
Contrastando, o autor de Noveleletas, João Paulo Vereza, lança mão de uma geografia deliberadamente regional (com exceção do conto final), detalhada em nomes, trejeitos, dicções e acentos, com todos os respectivos tiques (e taques). Criação perfumada a Brasil profundo. Na apresentação, Evandro Affonso Ferreira alerta o leitor que, para enfrentar o livro, deixe de lado seus apetrechos modernosos, como "celular, lepitope e cousalousa".
Em seu romance, Peres, paranaense de Maringá, cria um homônimo do gênio argentino Jorge Luiz Borges. Tudo começa por causa de alguns equívocos, frutos da paixão juvenil do homônimo por uma jovem judia, abrindo espaço para que o homônimo seja tomado pelo original. O mal entendido é seguido por interpretações enviesadas de textos de Borges. Essas interpretações misturam-se à ascensão do Partido Nazista na Alemanha, textos de filósofos gnósticos, cultos secretos, tudo costurado com expressivo talento do autor. Marcos Peres, dá mostras, além do perfeito domínio da obra do grande Borges, de maturidade em seu oficio (o que é um paradoxo, uma vez que O evangelho segundo Hitler é seu livro de estreia).
"E, na minha frente, uma respiração rouquenha e pesada indicava que outra pessoa estava ali. Era ele. Sua respiração forte e quente me fez perceber que estava muito próximo. Por um momento, em um estranho e inexato segundo, imaginei que o pedágio para ter acesso àquela sala era despir-me da visão. Mais que minha visão, sentia-me despido também de voz, sensação ruim de não conseguir concatenar uma fala articulada no escuro e abafado ambiente, a frase que eu ensaiei por décadas agora presa em algum ponto da garganta, algum invisível ponto já que eu nada conseguia ver. Respirei fundo, respirei quase tão grave quanto o homem que estava alguns centímetros à frente. Fechei os olhos - imaginei que ele estava de olhos fechados. Assim estaríamos em iguais condições, sem que eu conseguisse despistar a sensação de claustrofobia que me inundava por completo.Pigarreei e quase disse minha ordinária e repetitiva oração, apenas para me concentrar, apenas para perceber que eu era capaz de falar dentro do escuro quarto. Inaudível, postulei a frase que eu mais repeti, a súplica para encontrar o outro, indiferente ao fato de que ele estava diante de mim. A oração me deu forças e, com esforço, consegui falar. E, com grave entonação, disse as seguintes palavras, que muito repetira já na frente do espelho: "Jorge Luis Borges? Prazer. Eu sou ... Jorge Luis Borges.'"
Um seguidor de Umberto Eco - em razão do enredo erudito e bem articulado - , sem as concessões e escorregadelas de Dan Brown. É o crítico Manuel da Costa Pinto, na quarta capa, quem afirma, sem meias palavras: O evangelho segundo Hitler é um romance notável.
Já João Paulo Vereza, em Noveleletas, de uma certa forma também escapole de sua aldeia. Urbano (é carioca, radicado em São Paulo), conquistou seu primeiro lugar com um texto recheado de regionalismos, pontuado por neologismos. Além disso, um texto peculiar. Contos? Mas não são muito longos? Além de extensos, um deles, "Canção de Mané Cotó", está em versos! Para onde vai a antiga receita de que nesse gênero o recado tem que ser rápido: autor e leitor no rinque, soco direto e nocaute; leitor na lona? O texto, quando não em versos, é detalhadamente narrativo. José Castello, membro do júri, nas orelhas do livro, mata a charada: na época das fórmulas e da repetição, Vereza apostou na coragem, na ousadia.
Assim, brotam das páginas de João Paulo Vereza, em Santo Antão do Rio da Luz, o restaurante de Beto Esqueleto, Luiz Fede Bode, Damasceno, Padre Santano, o mendigo Punheta, o cachorro Chorume, o cavalo Vagaroso. Na sequência, em páginas que rescendem a abricó, surge Barra Pequena, com seu mar, seu monstro - dá-lhe Deutilande - e seu povo: Nestor, Ribeirão, Padre Benigno,Padre Agostinho, Laurinha e os outros.
"- Deutilande, Vianna. Anda logo. Quero saber tudo, tudinho. - Veja só, minha flor. Ideia do que é isso não tenho nenhuma. Nem adianta perguntar. Se ficar assim de crista só perde tempo. Vá minha linda. Deixe disso, vá. - De sonso você não tem nem o bigode, Vianna. Deutilande. Não sou besta. Você sabe e tá na cara. Anda logo. Não sou mulher de jogar conversa fora. - Veja só meu tesourinho. Vou ser de honestidade porque você merece. Ouvi falar disso sim aí. E vou dizer quando: pois foi é que agora. Tem menos de um minuto. Ouvi da sua boca própria, Carmelinda. - Larga de ser besta, Vianna. Não foi de brincadeira que vim aqui. E vou avisando logo: chega disso já. Gafieira não virou homem feito pra viver olhando para os cantos. Não é de nada, não. Perdeu gosto por tudo. Não olha mais as crianças, não cuida mais da rede. Passa o tempo olhando para o mar. Só olhando o mar. Endoideceu. Loucurizou. Nem tem tanto tempo que começou. Foi da última vez que foi para o mar. Voltou branco que nem espuma de onda forte. E agora só chega perto do mar com o olho. Senta na praia, janta no deque. Alguma coisa aconteceu. Você sabe que sim. Gafieira voltou naquele dia do mar e veio direto pra cá. Ribeirão que contou. Só fala em Deutilande. Que não pode voltar para o mar e que vai ficar sem barco. Que ninguém acredita e que vai ver Deutilande de novo pra ficar de prova. Quer saber. Anda logo. Que foi que ele ouviu de você?"
A exemplo de Marco Aurélio Cremasco e Lucia Bettencourt, outros vencedores do Prêmio Sesc Literatura obtiveram reconhecimento também por meio de outras premiações. Wesley Peres, ganhador do Prêmio Sesc romance, edição 2006/2007, com Casa entre vértebras - e que lançou recentemente As pequenas Mortes (Rocco)- figurou não apenas entre os finalistas do Prêmio São Paulo, em 2008, mas também entre os indicados para o Prêmio Portugal Telecom daquele ano. Também em 2008, o romance Zé, Mizé, Camarada André, de Sergio Guimarães, ficou entre os finalistas do Portugal Telecom.
Continuando, Mauricio de Almeida, premiado pelo SESC (2007/2008), com seus contos reunidos em Beijando dentes, teve a confirmação de seu talento como finalista no concurso Off Flip, em 2012; Marcio Leite, autor do romance O Momento Mágico, premiado pelo SESC na edição 2008/2009, conquistou o Prêmio Internacional da União Brasileira dos Escritores, em 2011, com novo romance, Pelas frestas do Telhado (Novo Século). E, Luisa Geisler, que se sagrou duplamente vencedora do Premio SESC Literatura - a primeira vez na edição 2010/2011, na categoria contos, com Contos de Mentira e a segunda, na edição seguinte, com o romance Quiçá - não apenas foi finalista do Prêmio Jabuti, mas também incluída na edição da revista Granta que mapeou os melhores jovens autores brasileiros da atualidade.
Tudo sem deixar de lado o talento de Nereu Afonso da Silva, que divide seu tempo entre São Paulo e Paris, onde é um dos colaboradores do Laboratório do Conto, na Maison du Conte, autor da vitoriosa coletânea de contos Correio Litorâneo, vencedor da edição 2006/7; do jornalista Sergio Léo (edição 2008/9), com seus inspirados contos reunidos em Mentiras do Rio, deliciosamente ilustrados com vinhetas de Rubem Grilo (que também é o autor da ilustração da capa); de Gabriela Gazzinelli e Sergio Tavares (ambos da edição de 2009/10), aquela primeira com seu romance narrado pela língua sabida de Louro, o Prosa de papagaio, e este último com seu livro de contos Cavala. Tavares, no ano passado, lançou novo livro de contos Queda da própria altura (Confraria do Vento). Como fecho, cabe reservar amplo e merecido espaço para ainda dois ganhadores: Arthur Martins Cecim, nascido em uma família de escritores com raízes no Norte do Brasil (é filho de Vicente Franz Cecim e neto de Yara Cecim), foi o vencedor, na categoria romance, da edição 2010/11, com Habeas asas, sertão do céu, e Rafael Gallo, multitalentoso, já que músico e escritor, conquistou o Premio SESC Literatura, na categoria contos, com Réveillon e outros dias (edição 2011/2012).
Outras coisas também couberam na bagagem, como as recorrentes discussões sobre um possível novo ensaísmo, refletidas tanto na Oficina Flip Serrote, neste ano dedicada ao ensaio, como na mesa que reuniu, no dia 7 de julho, os ensaístas Geoff Dyer, autor inglês de Todo aquele jazz, e o norte-americano John Jeremiah Sullivan, que assina a coletânea de textos intitulada Pulphead, o outro lado da América (ambos publicados pela Companhia das Letras). Na mala de mão, o número 14 da revista Serrote, lançado na FLIP, cujo ensaio de abertura, de autoria do erudito ensaísta brasileiro Alexandre Eulálio (1932-1988), Professor de Teoria Literária da UNICAMP,discorre sobre o ensaio literário no Brasil... Porém tudo outras histórias, com certeza para uma próxima vez.
As inscrição para a 11ª edição do Premio Sesc de Literatura estão abertas, e o edital está disponível no site.
Eugenia Zerbini
São Paulo,
1/8/2013
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