COLUNAS
Terça-feira,
13/8/2013
American Horror Story: Asylum
Duanne Ribeiro
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A segunda temporada de American Horror Story (subintitulada Asylum), série competente de terror exibida pelo canal a cabo FX, traz duas ideias interessantes, ou melhor, seu roteiro é fundamentado em duas noções. Primeira, a de que o saber é uma forma de poder: o conhecimento sobre como as coisas "são" ou "devem ser" permite dispor veredictos sobre as pessoas, incluir, excluir, destruir, isolar. O ambiente da história é um manicômio na primeira metade do século XX - exemplo sempre mais do que intenso de como palavras que ostentam técnica e trabalho podem esconder cegueiras: medicina, psiquiatria, segurança pública. Segunda, a de que o "mal" é constituído também por uma fragilidade, isto é, atrás da brutalidade, há carência, frustração, descompasso. De certa ótica, ambas são a mesma: a força esconde a fraqueza, a fraqueza gera a força.
A série é uma miscelânea de enredos que o cinema empregou no horror: um assassino serial (o "Bloody Face", que usa uma máscara e tem sua obsessão materna, como Jason em Sexta-Feira 13; suas cenas são as partes do seriado que seguem o gênero slasher); copycats desse serial killer, isto é, gente que "admira o seu trabalho" e o repete; possessão demoníaca (as manipulações psicológicas e blasfêmias típicas desde O Exorcista); nazistas e experimentos desumanos; mutantes antropófagos; alienígenas e abdução. American Horror Story parece estar atirando para todo lado, e provavelmente está, mas é divertido, e se consegue amarrar bem essa multidão de premissas. (Por outro lado podemos ver aí uma confissão da indústria - nenhum desses plots, sozinho, tem hoje em dia poder de chamar a atenção. O terror é um gênero cansado, não?). Todas essas complicações confluem no asilo Briarcliff, no qual nós assistimos aos membros da Igreja Católica que administram o local e seus "pacientes".
Embora não seja por conta dessa mistura, o roteiro tem seus problemas, sim. De buracos na história (em certo ponto, três internos conseguem fugir do manicômio, mas são perseguidos pelos mutantes e tem de retornar; sem saber disso, guardas vão procurá-los (na verdade, por outros três que sumiram por outras razões), mas não sabemos de ataque mutante algum...) a trechos forçados (uma das protagonistas escapa do Bloody Face e entra no primeiro carro que vê na estrada; é justamente o veículo de um sujeito que odeia mulheres e estava prestes a dar um tiro na boca...), isso pode incomodar alguns espectadores. Mas são passáveis, não é uma deficiência crônica. Acima disso, a série consegue desenvolver dramaticamente seus personagens (e transformar nossos sentimentos por eles), assim como abordar temas sociais e políticos contemporâneos, como veremos.
Asfixia do Conhecimento
Uma sensação frequente em American Horror Story: Asylum é de que os personagens estão mergulhados em um saber do qual não podem escapar, e que pode manipulá-los conforme queira, e sempre justificadamente. Assim, banhos de banheira forçados, com água ou muito quente ou muito fria; espancamento; eletrochoque - todos são executados sob a aparência da razão; e a negação do "paciente" só poderá significar que a doença está muito arraigada. Assim, para "curar a homossexualidade" (talvez por ato falho dos escritores da série, não se usa o nome de fato dado pelos psiquiatras quando se era permitido tratar sexualidade como doença: "homossexualismo") a "terapia de aversão" exibe a uma mulher cenas de nudez feminina, ao passo que se ministra a ela substâncias que incitam o vômito; depois, trazem um homem nu e a fazem segurar seu pênis enquanto se masturba. Isso a regularizará. Então não há a quem apelar e a submissão é a única atitude aceita: essas são pessoas fora do campo da razão. A impunidade, a arbitrariedade e o autoritarismo têm aí folga para agir.
Pela sua forma, pelas definições de seu gênero e sua mídia, American Horror Story retira um pouco da brutalidade de todos esses atos; acompanhados de anjos da morte, demônios e papais-noel assassinos, é como se fossem menos reais, ou pelo menos tão fantasiosos. Não são: a história da psiquiatria tem tantos exemplos de barbárie quanto a série e outros ainda mais vívidos. Briarcliff é um filhote do Bethlehem Royal Hospital; o nazista Artur Arden é tanto obviamente um eugenista como o foram Francis Galton, Alfred Ploetz e Ernst Rüdin quanto lembra Henry Cotton, que medicava problemas mentais com remoções de partes do corpo; e o flagelamento impingido pela irmã Jude remete à cura de Samuel Cartwright para a drapetomania - isto é, o desejo "patológico" que os escravos tinham de fugir. Diferente do que concluímos para A Serbian Film, aqui temos a apresentação dos temas, mas é vago o choque, se há qualquer choque. É "terror", é "assim mesmo".
Apesar de tendencioso, sensacionalista e por vezes impreciso, o documentário Psiquiatria: Uma Indústria da Morte (assista aqui) fornece um inventário desse tipo de barbárie com as vestes da racionalidade. Um interesse a mais no caso específico desta crítica: o filme é uma produção da Citizens Commission on Human Rights (CCHR), órgão ligado à cientologia. Os roteiristas de American Horror Story, Brad Falchuk e Ryan Murphy, em outra criação sua, Nip/Tuk (a partir da quarta temporada), retrataram esse corrente religiosa - Ryan se disse "curioso" sobre ela. Não conheço registro de que sejam adeptos dessa religião, porém Asylum pode ser outro passo dessa curiosidade, e ilustração daquela bandeira cientóloga.
Mais Política
Se é, isso se dá de maneira muito fraca e subliminar. Mais evidente é o ativismo da série no que se refere às questões de gênero. Como contamos, há a encenação de uma antiga forma de "cura gay", que, pelo distanciamento de época e da ficção, aparece claramente como um modo de tortura. A tentativa de forçar o comportamento é ressaltada como barbárie. Outra produção dos escritores retrata a homossexualidade (e sua dificuldade de aceitação) - Glee - e Ryan Murphy escreveu uma carta pública em que chamava um boicote contra a revista Newsweek, que publicou um artigo defendendo que atores gays não deviam representar personagens heterosssexuais. Ainda mais forte é o feminismo de American Horror Story.
Foi descrita acima a fuga de uma protagonista, sua entrada no carro do futuro suicida. Pois bem: ela está de camisola, suja, descalça, teve os tornozelos presos por correntes por dias. A primeira coisa que o homem pergunta é: "O que você fez?". Ela diz: "O que te faz pensar que eu fiz alguma coisa?". O absurdo do pensamento automático aparece claramente como um efeito ideológico. Outros exemplos feministas: uma personagem diz, à beira da morte, a uma menina pequena: "Nunca deixe nenhum homem lhe dizer o que você é". A mesma personagem ouve noutra vez: "Você é uma mulher forte, os homens nunca te deixariam ir longe". Uma interna de Briarcliff diagnosticada como ninfomaníaca, prestes a ser estuprada (e isso posto como: ora, não é do que você gosta?), reafirma que "mas sou eu que escolho".
Um último exemplo: a questão do aborto. O assassino engravida a protagonista citada. Ela foi sequestrada, mantida em cativeiro e estuprada. Não quer manter a criança. É obrigada pela instituição. Quando pode escolher, decide que "não haverá mais mortes". Mas a falta de afeto real e presença leva a repetição dos mesmos erros do pai: o filho cresce para ser o novo Bloody Face. Ingênuo, certo? Mas na medida contra argumentos antiaborto que façam referência à vida que esses fetos possam ter. Ora, diz a série. Eles podem muito bem tornarem-se monstros.
Uma Fresta de Luz
Não há nunca bondade, pelo menos nunca bondade completa, em American Horror Story. Todos têm sua cota de egoísmo, algo que prefeririam esconder do passado, uma condição presente que força a agir de uma forma perniciosa. De mesma maneira, jamais maldade íntegra. Embrenhada na obscuridade do indivíduo, estará um ponto dissonante.
Há três casos fundamentais nesse sentido. Bloody Face, como dito, é marcado pela carência que nutre desde a infância. Por debaixo da sua crueldade, a busca é pelo toque materno. O doentio nascido de uma falta de afeto não o torna melhor, mas... certamente lhe colore de um jeito diferente. O nazista Artur Arden é, para além do seu puritanismo, fascinado pela pureza, pela bonomia intacta, e quando lhe retiram isso - assim como a sua ambição - o resultado é que ele não tem mais vontade de viver. Por fim, a irmã Jude, cruel na posição de gestora de Briarcliff, é confrontada com seus próprios erros, colocada na situação de quem oprimia. Como detenta no manicômio, ela dirá, Jude atinge a clareza. E sua purgação segue até o ponto em que ela se reconstrói inteiramente nova.
Um trecho da série em quadrinhos Casa dos Mistérios nos serve de ilustração: "Quando você está despedaçado por dentro... quando está magoado, desmoralizado, ou simplesmente nasceu assim... essa rachadura cria uma fenda. E é por essa mesma fenda que brilha a luz. Uma luz forte, um holofote, que faz queimar toda falsidade, fingimento e fanfarra... até que reste somente a verdade". Em American Horror Story, isso quase sempre não ocorre totalmente, mas é notório em Jude, protagonista verdadeira da série, que cumpre essa saga do herói invertida, do poder à simplicidade.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
13/8/2013
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