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Quarta-feira,
14/8/2013
Digam a Satã que estreei
Luiz Rebinski Junior
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Se Daniel Pellizzari não tivesse sido contemplado com estadia na capital irlandesa, onde passou 32 dias com o objetivo de escrever uma "história de amor", valeria a pena o escritor juntar um troquinho e se bandear pro outro lado do oceano por conta própria. A viagem, diferentemente do que ocorreu com a maioria dos colegas que partiram para estadias em cidades hypadas do planeta, fez bem ao amazonense-gaúcho, que até aqui havia apenas treinado a escrita de romances.
Alguns títulos da coleção Amores Expressos não conseguiram escapar de certo "olhar brasileiro" diante de um país culturalmente muito diferente. O que não ocorre com Digam a Satã que o recado foi entendido, a história que Pellizzari supostamente gestou em seus dias de Dublin. Ainda que o título espalhafatoso não dê conta de dizer sobre o que é o livro, só a curva feita pelo autor para desviar de Joyce - o que não é fácil, pois o cara deve ter a onipresença de um Pelé na Irlanda - já vale um elogio. No entanto, para além das manobras certeiras, o romance de Pellizzari traz personagens tão interessantes e donos de suas histórias que nem um brasileiro com o nome de Magnus Factor (a coisa mais fake do livro) ofusca o romance. Magnus, que é o personagem principal do livro, mas não o mais interessante, honra o nome gringo que tem ao destilar um conhecimento enciclopédico e "orgânico" da Irlanda. Dizem que o autor é um pesquisador da cultura irlandesa e que há anos se interessa pela região. Eu acredito.
Magnus trabalha em uma empresa que promove passeios por lugares obscuros de Dublin. Vive com uma eslovena que faz estripe em uma boate à noite - mas jura que não dá para ninguém - e é sócio de dois imigrantes e de um genuíno irlandês, um tal Barry, esse sim o personagem mais singular do romance. Barry encarna alguns clichês do irlandês - o que para mim, como leitor, não chega a ser problema, pois sou um homem que acredita piamente em muitos clichês -, é um beberrão, acha que toda mulher "é apenas um furo", acredita que os negros são comparáveis a uma subespécie e que os imigrantes fazem parte da escória da sociedade. Mas diz isso com muita graça e até alguma poesia, acreditem. Ou seja, Barry é um ser misógino, racista e tarado. Por isso mesmo parece bastante verdadeiro. Afinal, é nascido e criado na Europa, um lugar que não é, digamos, o paraíso da fraternidade.
O cara fala tudo errado, mas no fundo de sua ignorância pululam pensamentos lapidares sobre temas nacionais como "mulheres que cheiram cocaína", "campanhas contra a gonorreia" e "a falta de asseio dos neo-hippies". Barry mantém parentesco com Zeca, esse sim brasileiro nato, que povoa a Pornopopéia de Reinaldo Moraes. Mas digamos que Barry é menos escolarizado, mas, contraditoriamente, mais politizado do que o hedonista saído da mente de Moraes. O espectro de Irvine Welsh também ronda o romance de Pellizzari, que é o tradutor de Trainspotting, talvez o mais emblemático romance sobre os anos 1990. Assim como o livro de Welsh, Digam a satã que o recado foi entendido faz uma espécie de inventário de um grupo peculiar de jovens perdidos em meio à difícil tarefa que é viver.
"Uma carne imigrante arreganhada na minha frente e eu sem poder botar para dentro. Nunca mais, parcêro. Pode anotar aí. Camisinha nunca mais. O recado foi entendido. Se você acha camisinha inconveniente, experimente ter gonorreia. Ah, mas vai se foder. Chupa minhas prega bem gostoso, bichona do governo que inventou essa campanha de merda. Cê acha gonorreia inconveniente? Então experimente não comer ninguém, ô filho da puta", diz um dos trechos em que Barry apresenta ao leitor uma questão filosófica e existencial no mínimo intrigante.
Barry, depois de quase estuprar Stefanija, a namorada eslovena de Magnus, e matar acidentalmente a avó de Stuart, o malucão que lhe deu um teto para morar, acaba decapitado e com a cabeça boiando em um rio por conta de dívidas não pagas a traficantes gregos.
Entre a história malfadada da empresa de tour e a morte de Barry, outras narrativas se desenvolvem. Uma delas é a história de um deus-serpente irlandês. Pode ser que eu tenha cochilado nessa parte, mas realmente não entendi o que essa história tem a ver com o restante do livro. Junto com referências infantilóides a jogos de vídeo-game e descrições sobre o sabor do milk-shake e dos sanduíches vendidos em Dublin, é a pior parte do livro.
Mas, em um romance relativamente curto, Pellizzari conseguiu escrever uma narrativa com várias vozes interessantes. Além de Barry e Magnus, há outras narrativas no meio da trama que ajudam a moldar a história. A linearidade do romance, que não é exatamente linear, é composta por narradores diferentes. Apesar de alguns deslizes, o autor construiu um mosaico que se encaixa muito bem. A estranheza de estar em um lugar distante certamente é a discussão mais relevante levantada no livro. Algo que parece tão cafona nos dias de hoje, um tempo de internacionalização da cultura, virou um grande tema literário nas páginas do romance de Pellizzari.
No momento em que parte da jovem literatura brasileira parece ter caído de paixão pelas tramas internacionais (o que transcende os livros da coleção Amores Expressos), com personagens estrangeiros que trazem em seus genes as marcas da globalização, Digam a satã que o recado foi entendido talvez figure, ao lado dos livros "estrangeiros" de Bernardo Carvalho, como um ponto alto dessa "tendência". Ah, a história de amor? Isso, acredite, é o que menos importa nesse livro que é a real estreia de Daniel Pellizzari na literatura nacional.
Luiz Rebinski Junior
Curitiba,
14/8/2013
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