COLUNAS
Quarta-feira,
18/9/2013
American Dream
Marilia Mota Silva
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Exatamente, padre. Exatamente por ser menina é que ela deve aprender a dar murros, dentadas, pontapés.
(Mia Couto em A Confissão da Leoa)
"Se você quer o sonho americano, vá para a Finlândia". A frase do líder do partido trabalhista britânico, criticando a crescente desigualdade social nos Estados Unidos, tem sido repetida em discussões domésticas, a propósito de outras áreas em que o sonho americano desfez-se em frustração: a escola pública, o fraco desempenho das crianças, se comparadas as de outros países; o sistema de saúde, a política de imigração. Às vezes o destino varia. Quando se fala de família, maternidade, criança, o país de referência costuma ser a França.
Os Estados Unidos são o único país desenvolvido em que não há licença-maternidade remunerada. (Alguns Estados e empresas preveem pagamento parcial durante licença de quatro ou seis semanas. São exceções.)
A mulher pode obter até três meses de licença não-remunerada para cuidar do recém-nascido, mas mesmo essa licença depende de várias condições. Ela tem que estar no emprego há pelo menos um ano e ter trabalhado pelo menos 1250 horas. A norma não se aplica a empresas com menos de 50 empregados. Assim, quem trabalhava meio-expediente, ou em firma pequena, ou estava no trabalho há menos de um ano, não tem direito à licença. E, mesmo quando preenche as condições, muitas vezes a mulher volta a trabalhar antes da hora porque tem que pagar as contas. Essa "conquista" só foi conseguida em 1993, quando Clinton assinou o Family and Medical Leave Act . Antes nem isso havia.
Na França as mães têm direito a 16 a 26 semanas de licença com salário total, dependendo do número de filhos. E, se quiserem, tem um adicional de 296 semanas de licença não-remunerada com a garantia de ter o trabalho de volta.
Nos EUA não existe um sistema nacional de creches. E as creches privadas que existem são caras - e exigem sempre a participação dos pais, na forma de trabalho voluntário e obtenção de mais recursos. Mesmo assim são poucas, não atendem a demanda. Há sempre lista de espera. Cobram cem dólares apenas para anotar o nome da criança nessa lista - nome que raramente é chamado. Essa cobrança, se não é lei, é praxe. Todas fazem.
Na França, há um sistema nacional de creches subsidiado pelo governo que atende crianças entre dois meses e três anos. As creches ficam abertas de sete da manha às sete da noite. Não dão cobertura total, dependendo da área, pode ser difícil conseguir vaga, mas isso não chega a ser problema porque as mães tem direito à licença. Os pais pagam o que puderem, de acordo com suas posses.
O Jardim de Infância gratuito atende 99% das crianças francesas de três aos cinco anos de idade - o significa que a qualidade é alta, e que crianças de todas as classes sociais frequentam a mesma escola.
Nos Estados Unidos, até a criança atingir cinco anos (ou mais, se nasceu no primeiro semestre porque o ano escolar começa em setembro), os pais tem que se virar sozinhos. Com babá, creche ou escolinha particular. E mesmo depois dos cinco anos, quando a criança vai para a escola, a situação continua muito difícil para a mãe que trabalha fora porque são incontáveis as sextas-feiras livres, os dias em que a aula acaba mais cedo, sem falar nos feriados, recesso de primavera, recesso de fim de ano, e férias de verão, de 20 de junho ao começo de setembro, mais ou menos. Sem ajuda efetiva é impossível que alguém possa assumir seriamente um trabalho.
Nessas circunstâncias, muitas mulheres se veem compelidas a deixar a profissão para ficar em casa cuidando dos filhos. Abrem mão da autonomia, de tudo o que conquistaram em anos de estudo e trabalho, não porque, de repente, enxergaram inacreditáveis alegrias em se tornar dependentes do marido e viver às voltas com fraldas, papinhas e parquinhos, mas porque não suportam a ideia de deixar seu bebê de poucas semanas aos cuidados de estranhos.
As mais pobres não tem nem mesmo essa escolha. Mesmo que contem com o marido, raramente um salário apenas cobre as despesas da casa. De acordo com o último censo, cerca de 500 mil mulheres voltam a trabalhar depois de quatro semanas de ter tido criança. Muitas voltam com poucos dias do parto. Não imagino como essas mulheres se dividem entre o trabalho extenuante com o recém-nascido, as noites maldormidas e o trabalho fora de casa. E a criança estará, provavelmente, em uma creche de baixa qualidade com as graves consequências que isso acarreta.
Foi uma conquista do feminismo que as mulheres fossem mais respeitadas e tivessem mais auto-respeito, seja o que for que decidam: trabalhar em casa, sem remuneração, dependendo do marido, cuidando dele, da casa e dos filhos; ou trabalhar também fora de casa, tendo certa autonomia financeira, desenvolvendo-se profissionalmente, mas em prejuízo dos filhos (se não tiver o suporte necessário). Não se pode falar que ela tenha, de fato, uma escolha quando as alternativas são essas. A menos que ela seja Marissa Mayer, que pode montar os aposentos do bebê com seu próprio staff ao lado de seu escritório.
Em 2003, o New York Times publicou um artigo sobre mulheres altamente qualificadas e bem sucedidas profissionalmente que resolveram deixar tudo para ficar em casa cuidando dos filhos. Dez anos depois, em agosto passado, o jornal foi procurá-las para dar sequência à história, e publicou o resultado: "A geração que optou pela volta ao lar quer retornar ao trabalho", (The Opt Out Generation Wants Back In) . As mulheres retratadas na reportagem estão tentando recomeçar, mesmo muito abaixo da posição que tinham conquistado, mesmo em outras áreas, sob pressão financeira e, nos casos de divórcio, precisando do trabalho até para ter seguro-saúde.
Muita gente criticou o artigo e as entrevistadas, alegando que a mulher americana (especialmente essas com alto padrão de vida) não devia reclamar porque tem vida melhor do que a maioria das mulheres do mundo. Um argumento que não faz sentido. Não se trata de competição na desgraça. Se um prisioneiro levou dez chicotadas perde o direito de reclamar porque outro levou noventa? Não. Ambos deviam se unir para combater a tortura.
Outro argumento míope, que já ouvi algumas vezes: "Por que os que escolheram ter filhos devem ter o suporte dos que escolheram não ter?". Uma das respostas óbvias seria: Porque se ninguém tiver filhos, quem vai pagar sua pensão, cuidar de você na velhice? Onde vão estar os médicos, enfermeiros, agricultores, lixeiros, a infinidade de pessoas de quem nossa vida e bem-estar dependem?
Nos anos 70, houve uma tentativa de criar um sistema nacional de creches, mas os conservadores convenceram Nixon a vetar o projeto com o argumento de que isso tornaria fácil para a mulher trabalhar fora, o que seria o fim da família americana tradicional. Não deu resultado. Ainda que recebendo salários mais baixos para fazer o mesmo trabalho que os homens (77 centavos por dólar), ainda julgadas, (des)valorizadas pela aparência, a maioria das mulheres, mesmo com crianças pequenas, trabalha fora de casa. Porque querem, porque precisam. Depender de outro para seu sustento e dos filhos costuma ser uma estratégia arriscada.
Esse jogo duro contra a mulher-mãe-criança afeta profundamente o presente e o futuro de uma sociedade e, no entanto, o assunto não consta da agenda dos políticos, não aparece em discursos de campanha, de Republicanos ou Democratas. E as mulheres não pressionam como deveriam talvez porque, como foi dito acima, comparando sua situação com as histórias de horror, violência, vilania cometidas contra a mulher em todo o mundo, elas se considerem em posição privilegiada. Ou talvez seja o movimento de maré da história, estaríamos no fim de um período de recuo.
O fato é que há muitas batalhas pela frente, começando pela percepção da mulher sobre si mesma e sobre sua real situação. Como diz a escritoraJessica Valenti "para as mulheres na América, igualdade ainda é uma ilusão".
Ninguém espera que os EUA se equiparem à França, mas algumas medidas simples seriam um grande avanço: horários flexíveis, meio-expediente com pagamento proporcional para pai e mãe, tendo em vista os cuidados com a criança. Os homens também deveriam ter esse direito. Não precisariam ser restritos ao papel de contracheque, penalizados pelo trabalho excessivo que os distancia da família, tirando-lhes o direito a uma vida mais rica, mais saudável, em contato real com os filhos. Mudanças essenciais que beneficiariam a todos e ajudariam o país a se reencontrar.
Marilia Mota Silva
Washington,
18/9/2013
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