COLUNAS
Terça-feira,
1/10/2013
A pintura intempestiva de Egas Francisco
Jardel Dias Cavalcanti
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Na provincianíssima cidade de Campinas, localizada no interior do Estado de São Paulo, vive um grande pintor: Egas Francisco. Isolado (e exilado) do grand monde da arte, ele diariamente cumpre seu ritual de criar obras inacreditáveis. Sobre seu trabalho já escreveram os críticos J. Toledo, Mario Schemberg, Alberto Beuttenmüller, dentre outros. Participou de exposições no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Masp) em 1975, da Bienal de Udine, Itália, em 1988, tendo feito exposições na Europa, em importantes cidades como Sttutgard, Milão, Frankfurt, Amsterdan.
Dois fatores tiveram influência na falta de um devido reconhecimento de sua obra: o período de sua maturidade plena enquanto pintor, anos 60 e 70, era a época do discurso sobre a morte da pintura, da valorização da arte conceitual e sensorial, das performances e instalações. Uma época que praticamente condenava a pintura de viés "expressionista" em nome de uma arte conceitual (no mínimo). E o segundo fator, o isolamento do artista numa cidade onde um movimento forte de artes plásticas praticamente não existe (embora existam bons pintores na cidade).
Junto a isso, a preguiça dos críticos, curadores, instituições museológicas e até galerias, muitas vezes tomados mais por modismos comerciais do que pela valorização da qualidade artística (nem sempre com valor de mercado).
No entanto, Egas Francisco é e ficará, sem sombra de dúvida, como um dos grandes pintores do Brasil. Suas telas possuem a força, o temperamento, a surpresa, a amplitude emocional e poética necessárias para que suas criações sejam únicas em identidade formal e simbólica.
Frutos de um impressionante domínio da pintura e de uma psique convulsionada, os temas ao qual o artista se entrega são criados sempre de forma arrebatadora, imaginativa e tecnicamente impecável.
Cada tela branca chama-o a universos desconhecidos que vão se desdobrando e vindo à vida a cada pincelada. Egas é mais do que tudo um artista inspirado. Se fizesse arte para satisfazer o gosto do público sentiria que estaria se traindo, renegando o jogo dos sentimentos desconhecidos que o invadem a cada criação.
Sua busca é pela forma que se cria através da ativação de extensos campos de ressonância emocional. Pense-se, por exemplo, num tema caro ao artista, o erotismo, que é ao mesmo tempo foco de desejo, luxúria, prazer, mas também de frustração, conflito interno, desdém, humor e ironia.
Dentro de suas telas as formas encerram cargas emotivas em potencial: pinceladas que se cruzam, manchas que se avolumam, cores que contrastam podem evocar lembranças, desejos eróticos, a presença da morte ou da solidão. Como diz o próprio artista, "visitar meu atelier é passar pelo paraíso, pelo purgatório e pelo inferno". Nesse sentido, o extenso vocabulário de temas que encontramos em sua obra é bastante significativo.
Para além do tema, as formas e cores agem nas suas telas muitas vezes como recursos metafóricos e alegóricos. Cores e formas são transposições evocativas de lembranças perdidas, de pesadelos, de estranhas mutações psíquicas e corporais, de formas inimagináveis, dotadas de grande poder de penetração no observador.
Na sua pintura, a metáfora visual é significativa em si mesma, como fato pictórico puro. Egas, fiel aos valores pictóricos, emprega seu repertório de temas para organizar sua imaginação em termos visuais, amparado na própria materialidade da pintura: cores são acionadas tanto em consonância como em dissonância, em movimentação brusca ou parada, como blocos que sustentam o conjunto ou que dispersam os sentidos esperados; pinceladas criam ampla movimentação nas figuras, desfigurando-as muitas vezes, distorcendo os espaços, criando novas perspectivas aéreas. O objetivo é esclarecido pelo próprio artista, que diz: "Muitas vezes eu procuro fazer com que o observador se desloque e se sinta mal".
Produzidas por amplos gestos, cada pincelada torna-se uma caligrafia de uma sensibilidade complexa, criada a partir da interação ao mesmo tempo formal e subjetiva. Seu objetivo é atrair o espectador para o ato da criação, mostrando na desordem dos elementos uma coerência de energias que se avolumam na tela criando várias articulações de sentidos.
Suas formas, apesar de poderem começar com um simples rabisco ou marca inconsciente, são acionadas por intuições conscientes nas quais a experiência prática cotidiana do enfrentamento da tela tem grande participação. As suas telas são produzidas sem premeditações, mas, nem por isso, sem a pressão fiel e inflexível de um sentimento de precisão que traz em si a experiência de muitos anos de prática da pintura.
É o que comenta o artista ao ser indagado sobre seu processo de criação:
JARDEL: O quadro nasce como resultado de um controle e um descontrole ao mesmo tempo?
EGAS: A arte é onde seus nervos afloram. O ato de pintar, compor, de gestar alguma coisa, é um ato que envolve uma paixão muito grande. Você está inteiramente exposto naquilo que você faz, pois você está correndo todos os riscos e está consciente também de que você está correndo esse risco. Ao mesmo tempo em que existe a sua intuição, que ela inicia algum processo, a sua razão acompanha e controla dentro de uma pseudorazão, não é a razão propriamente dita. Não é a razão dos homens. É uma outra razão. Porque você está vivendo alguma coisa tão intensamente, você está dentro daquilo que você está vivendo...
JARDEL: E aí você não consegue pensar de fora?
EGAS: É. Você não consegue, pois está pensando de dentro do que você está vivendo. Na obra vão ficar impregnados todos os seus nervos, tudo o que é seu vai ficar ali. Se esta obra não resultar forte, então ela não significa nada.
Egas é um artista que não perdeu o contato com o significado do gesto humano. Por isso, não subordina nunca sua pintura à teoria, como fizeram muitos artistas, como os construtivistas, os neoplasticistas, os minimalistas e os teóricos da arte conceitual. Da mesma forma que a natureza humana é inconstante, variando em suas fantasias, desejos, sentimentos, paixões, não cabendo em camisas de força lógicas para explicá-las ou guiá-las, a sua obra também se mostra hostil às formas pré-concebidas, buscando, ao contrário, justamente os desacertos da forma, as contradições do movimento, os contrastes subjetivos entre cor e luz.
O significado da potência vigorosa da sua arte pode ser encontrado nas formas vivas, como pedaços de carnes vibrantes de cor e movimento, que se concretizam nas suas telas. Dissolvendo as formas e os contornos das figuras, pinceladas sugerem uma espécie de erotismo vital contendo tanto passagens de calor (quando o vermelho contamina as formas que jorram incontroláveis ao seu lado), como de frio vibrante (quando o branco se aloja sobre formas em constante tensão). Uma profusão de pinceladas desconcertantes, retorcidas, opticamente vibrantes, não raro entrecortadas, revela uma técnica magistral de uso da cor, que cria uma realidade visual impactante aos olhos do espectador. Suas obras caracterizam-se, por isso mesmo, pela cor forte e não naturalista e pelas pinceladas intensas.
Sua busca pela forma é o resultado de uma retidão de propósito que reflete uma extraordinária clareza de pensamento e de sentimento em relação à sua dedicação quase mística à pintura. Segundo palavras do próprio artista: "Eu acho que se a forma falha, falhou tudo, não tem mais chance, porque na pintura não se vive sem forma."
Na sua pintura, a interação dos elementos é dada num grande fluxo de encontros ou cruzamentos visuais, quando contornos internos e externos são fragmentados por golpes e contragolpes provindos dos gestos do pintor. A tenacidade da perícia do gesto executado rapidamente, quase instantaneamente, é extraordinária. Através dessa disposição se produz claridades luminosas e vivacidades que não poderiam ser atingidas em composições mais meditadas.
Para o artista, a forma da pintura deve ser, como numa composição musical, guiada pelo ritmo: "O equilíbrio é importante sim, mas o ritmo é mais importante, eu acho que não existe arte sem ritmo, nenhuma, nem a arte de falar. Nós estamos falando aqui, mas se nós perdermos o ritmo não vai ter graça nem sentido. Então, na pintura se eu perder o ritmo, eu dancei".
O interesse pelo movimento sempre foi uma constante no trabalho de Egas: "Eu sempre desenhei desde criança, e eu sempre tive a audácia e o atrevimento de querer surpreender o flagrante, de querer pegar uma figura em movimento, de perseguir uma pessoa, ir atrás de uma pessoa andando para desenhar o andar dela, não ela, o andar dela. Um ciclista, por exemplo, não a bicicleta dele, mas o movimento da bicicleta, não o cavalo como ele se apresenta anatomicamente... o cavalo correndo, o trote do cavalo".
A pintura é para Egas como uma concentração de energia que se apodera do artista e se transmuta para as telas. Sentimentos que brotam de tensões quase insuportáveis, transformadas em visões admiráveis nas suas telas, elevam sua arte à grandeza da pintura de outros tempos. A influência de Van Gogh, nesse sentido, é clara e revelada pelo próprio pintor: "Quem mais me marcou foi Vincent Van Gogh, sem eu nunca o copiar. Marcou na expressão, no conteúdo e na tragédia".
Diferente da pintura de um artista como El Greco, que faz as formas ascenderem de maneira suave, do natural ao sobrenatural, Egas produz uma tensão sem equivalente entre estes dois mundos antinômicos. Esta forma de apresentar essa crise entre matéria e espírito está presente em várias telas do artista.
Através de gestos expressivos, que traduzem visões essenciais para a linguagem dinâmica da cor, o artista deixa de lado as ambições restritas ao objeto da arte mimética e, embalado pelo poder expressivo genuíno, ingressa numa dimensão mais elevada da criação. Afinal, não é através desse ato ontológico radical que a subjetividade libera-se das influências corrompidas do pensamento racional, dando acesso ao cerne da criatividade originária?
O que o interessa é jamais se tornar ilustrativo. Sua pintura não é fonte de informação ou de narrativas coerentes. Cada centímetro da tela recebe os golpes que fazem introduzir em cada mínimo detalhe o maior e mais profundo conteúdo expressivo. Aqui a expressão não é levada para fora, mas para dentro do recipiente que é a obra de arte. Por isso, ao se observar a pintura de Egas, deve-se desdobrar a forma e estar atento a cada pequeno detalhe, esses códigos de intensidade que carregam exorbitantes cargas energéticas.
O procedimento de Egas não nos é estranho. Vários artistas procuram nas formas exteriores o seu conteúdo interior. Um músico como Debussy, por exemplo, criava impressões espirituais ao transformar em imagens alguns timbres de suas formas musicais. Toda a movimentação das suas pinceladas tenta encontrar uma correspondência na invenção de uma linguagem pictórica que concretize seu conceito de necessidade interior. E se toda arte tem um conteúdo interior, a forma é a manifestação exterior deste conteúdo.
Podemos também encontrar na sua atitude ecos da celebração dionisíaca de Nietzsche, que exaltava a energia transbordante da vontade livre. Isso se traduz na definição do gesto expressivo como um transbordamento de um impulso espiritual próprio ao artista. A forma da arte, seu estilo, é resultado desta tensão.
A relação entre sua pintura e o expressionismo é visível, mas o próprio artista define essa relação nos seguintes termos: "O expressionista faz um trabalho que sempre inclui naquilo que ele faz alguns signos relacionados com o destino do homem: nascer, viver, morrer. Isso existe. E acho que isso é que me liga a todos os expressionistas".
A pintura de Egas, consequentemente, pode produzir no espectador algo próximo a um delírio, onde realidade e ficção se misturam, onde consciente e inconsciente se cruzam, numa espécie de cópula pictural frenética.
Sua obra é o resultado de uma necessidade interior imperativa: querer pintar. "Eu faço pintura procurando satisfazer uma necessidade interior interna muito forte, que é movida por uma ansiedade muito grande."
Um trecho do poema "Estúdio sem vento", de Régis de Morais, talvez nos fale mais diretamente o que a pintura de Egas pode ser:
Benvindos ao meu reino de sol e espantos.
De passarinhos mortos, mulheres loucas e
iluminadas crianças. Entrem.
E me perdoem se aqui o eterno é efêmero
E o efêmero se constrói definitivo.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
1/10/2013
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