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COLUNAS
Quarta-feira,
2/10/2013
Assange: efeitos da internet em nosso cotidiano
Humberto Pereira da Silva
+ de 4400 Acessos
Julien Assange, criador e editor do WikiLeaks, junto com Jacob Appelbaum, Andy Müller-Maguhn e Jeremie Zimmermann, proeminentes personalidades do mundo digital, travaram diálogo sobre o poder e os efeitos da internet nos mais variados domínios da vida contemporânea. Em prisão domiciliar no Reino Unido, em março de 2012, Assange se reuniu com seus três colegas internáuticos. O resultado das conversas foi organizado e publicado com o título Cypherpunk - liberdade e o futuro da internet. A edição brasileira é de responsabilidade da Boitempo Editorial.
Cypherpunk foi estruturado com os seguintes tópicos: observações sobre as várias tentativas de perseguição ao WikiLeaks e às pessoas e ele associadas, maior comunicação versus maior vigilância, a militarização do ciberespaço, combatendo a vigilância total com as leis dos homens, espionagem pelo setor privado, combatendo a vigilância total com as leis da física, internet e política, internet e economia, censura, privacidade para os fracos e transparência para os poderosos, ratos na ópera.
A apresentação dedicada ao público latino-americano foi feita por Assange. Nela, destaque para a afirmação de que na internet todos os caminhos que vão e vêm da América Latina passam pelos Estados Unidos. Todos os dias centenas de milhões de mensagens vindas do continente latino-americano são armazenadas por órgãos de espionagem americana. Governos e empresas latino-americanas protegem seus segredos com hardwares criptografados, mas estes embaralham mensagem e as desembaralham quando chegam ao seu destino. Toda parafernália de softwares e hardwares disponíveis por governos ou empresas na América Latina é controlada pela inteligência americana.
A conversa entre Assange e seus colegas segue tom coloquial. Todos falam de modo espontâneo; são depoimentos soltos, com pontos de vistas genéricos que expressam como percebem e sentem o papel da internet num mundo em que seu uso é cada vez mais presente nas atividades mais ordinárias. O tom coloquial, inevitável, implica em superficialidades, contrabalançadas por terminologias técnicas de informática - tecnicismos provavelmente ignorados por muitos que tomam o computador exclusivamente como instrumento (notas explicativas ao final de cada capítulo são de fato formativas e trazem informações em contraponto à superficialidade da conversa).
A despreocupação com questões de fundo a que o tema dá vazão diz muito da maneira com que entendem o momento. O propósito, de fato, não é o de oferecer reflexão. Seria ingênuo esperar que fizessem exame aprofundado do que sabem e colocam à disposição do público. Assange e seus colegas são declaradamente ativistas. Assim sendo, orientam-se pela urgência, pela utilização de linguagem persuasiva, com apelo típico de quem vê a realidade pelo viés maniqueísta: nós estamos de um lado, o certo; de outro, o errado, nossos inimigos, que representam ameaça àqueles que ignoram haver hoje uma batalha internautica.
Com isso, no dialogo travado, certo ranço de teorias apocalípticas. Quem ler Cypherpunk com predisposição para imaginação, inevitável que seja absorvido pelo clima de paranoia similar a da iminência de conflagração nuclear nos anos de guerra fria: "A internet, nossa maior ferramenta de emancipação, está se transformando no mais perigoso facilitador do totalitarismo que já vimos. A internet é uma ameaça à civilização humana. (...) Se nada for feito, em poucos anos a civilização global se transformará em uma distopia da vigilância pós-moderna, da qual só os mais habilidosos conseguirão escapar". Estas são as linhas que resumem a necessidade de intervenção para Assange.
O sentimento de falibilidade, de autopreservação diante de ameaças que desconhecemos, faz parte da condição humana desde os tempos pré-históricos. Páginas e páginas de filosofia e teologia foram escritas sobre o temor, sobre a força da natureza e a intervenção divina, que nos protegeria ou castigaria. As religiões se fartam disso. O medo levou o filósofo Thomas Hobbes a escrever o Leviathan (1651), que, para situação como a descrita por Assange, é uma referência a se ter em vista.
Certo é que não se deve subestimar o alerta de Assange: a internet, de fato, exige que se repensem as relações humanas a partir de parâmetros que não existiam há pouco tempo. O sentido dado a palavras como "liberdade" e "privacidade" exige nova reacomodação conceitual. Uma simples ligação pelo celular, ou um post no Facebook, pode desencadear reações cujo sentido nos escapa. Assim, ler o alerta de Assange pode bem ser um cálculo utilitário num mundo com novidades tecnológicas as quais, em grande parte, os efeitos são ignorados.
Mas, igualmente, não se deve esquecer que o medo e a paranoia são condicionantes da condição humana. Não fosse seu alerta de histeria com a presença quase totalizante da internet em nossas vidas, seria o aquecimento global (acabo de ler avaliação do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas das Nações Unidas que antecipa para o meio do século verões quase sem gelo no Polo Norte), um cometa vindo de espaços siderais, um meteoro ou que o sol engolirá a Terra daqui a quatro bilhões de anos. É nesse ponto, contudo, que o diálogo entre Assange e seus colegas porta alguns paradoxos.
Destaquemos em especial um: a internet é justamente o veículo que torna possível seu alerta. O perigoso mundo da internet é o mesmo que nos possibilita acessar seu livro. Melhor, qualquer pessoa com acesso à internet pode lê-lo em qualquer lugar do mundo. Na história, basta pensar como o alerta que ele faz transitaria na Idade Média, quando a vida das pessoas era controlada pela Igreja Católica. Num mundo incrivelmente controlado como o atual, Assange, o WikiLeaks, e todo tecnicismo criptográfico estão disponíveis na internet. Como contraponto, pensemos nas sociedades secretas e todo tipo de hermetismo que circularam na Europa pré Revolução Francesa, cujo saber se perdeu e hoje é totalmente inescrutável.
Sim, este um paradoxo que não se pode deixar de lado e que escapa à "generosidade" de Assange: o controle no mundo atual também é movediço; não o fosse, não seria possível, em segurança, ele e seus colegas se encontrarem no Reino Unido e legarem Cypherpunk - liberdade e o futuro da internet. Em suma, vale ler e dar toda atenção a Assange. Mas vale igualmente refletir - o que ele e seus colegas não o fazem - que hordas e hordas ao longo da história não trouxeram o Armageddon, o fim dos tempos. Mais que a internet e seus efeitos em nosso cotidiano, uma ameaça real e concreta à civilização pode bem estar fora de nosso mundo, como não "desconfiavam" os dinossauros sessenta milhões de anos atrás.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
2/10/2013
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