COLUNAS
Quarta-feira,
6/11/2013
A Escolha de Alice
Marilia Mota Silva
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Alice Munro é a décima-terceira mulher a receber o Nobel de Literatura, desde que o prêmio foi criado há mais de um século. A assimetria dessa representação, 13 mulheres contra 93 homens, não é novidade. Desejável ou não, é o padrão a que estamos habituados.
Novidade é uma contista ter sido premiada. Até este ano, a Academia Sueca havia contemplado apenas romancistas e poetas.
Nos países de lingua inglesa, conto sempre foi visto como um gênero de segunda classe ou forma de fazer dinheiro rápido, com a publicação em revistas, até que o escritor estivesse pronto para se dedicar ao trabalho sério: poesia ou romance. A própria Alice Munro, quando lhe perguntaram sobre seu foco em histórias curtas, disse: "Por anos e anos, pensei que estava apenas praticando, até ter tempo de escrever um romance. Depois descobri que conto era tudo que eu podia fazer. Acho que é por isso que tento por tanto em minhas histórias, como uma compensação."
Tentou e conseguiu. "Suas histórias tem mais profundidade, sabedoria e verdade do que se encontra em toda a obra da maioria dos romancistas", dizia o painel dos juizes do The Man Booker International Prize, que lhe concedeu o prêmio de ficção, em 2009.
Além de elevar o conto a um status nobre, Alice demonstrou que não existe periferia nem assunto menor para quem escreve. Suas histórias se passam no interior do Canadá, em fazendas pobres ou em cidades pequenas; falam de pessoas comuns, mulheres principalmente, marginalizadas, presas nas armadilhas da vida. "Não existe isso de grandes e pequenos temas", ela disse uma vez. "Os maiores problemas estão ligados diretamente ao mal que existe em torno da mesa de jantar, na maneira como nos conduzimos uns com os outros."
Descobri Alice Munro, faz poucos anos, e encantei-me com a forma como ela tece a narrativa. O rumo é sempre imprevisível, e a cada volta que dá, aprendemos alguma coisa, um canto novo se ilumina. Sua linguagem acessível, coloquial, de certo modo dissimula sua precisão e refinamento.
Em suas palavras: "A complexidade das coisas - as coisas dentro das coisas - parece não ter fim. Quero dizer que nada é fácil, nada é simples". Essas infindáveis dimensões de que somos feitos, que seu extraordinário poder de observação nos revela, é um dos aspectos mais cativantes de sua obra.
Talvez por isso seus personagens, mesmo os secundários, continuem conosco, muito depois de terminada a leitura. O sujeito de meia idade, por exemplo, ele com a namorada mais jovem, em visita à ex-mulher. No fim da narrativa, nós os conhecemos bem, sabemos o que se passa em seus corações, talvez melhor do que eles mesmos! Alice ajuda o leitor a se sentir inteligente, ampliando sua capacidade de perceber, sem julgar, a alma humana. Musgo, (Lichen) é o título desse conto, perfeito para a história. Mas nem sempre é assim, nem sempre a escritora segue as normas. Às vezes, o título não dá nenhuma pista sobre o tema. Outras, a narrativa demora a engrenar, parece caminhar a esmo, e o leitor não tem ideia de sua direção ou tema, até o finalzinho. E o final, mesmo quando não encerra a narrativa de forma convencional, sempre nos deixa algo em que pensar.
Em Dança das Sombras Felizes (Dance of the Happy Shades), acompanhamos o recital que a velha professora de piano e sua irmã oferecem, todos os anos, para apresentação dos alunos.
A festa é uma tradição a que as mães se submetem em silencioso desespero: crianças sem talento, o repertório, sempre o mesmo, a sala pequena e quente, os presentinhos patéticos que as pobres velhas fazem questão de oferecer a cada aluno, os sanduíches ressecados na mesa da sala ao lado, onde moscas passeiam livremente! Podemos entender essas mães, estamos com elas no calor opressivo da sala, compreendemos sua troca de olhares agoniados, seus comentários condescendentes, sentimos o coração constrangido de pena das velhas solteironas, e contamos os minutos para ir embora. Mas no final, com poucas palavras, nossa percepção se altera e nossa piedade, nosso sentimento de superioridade se mostram descabidos. Em atônito silêncio, compreendemos que as duas irmãs habitam um outro plano, um mundo a que não pertencemos e que apenas vislumbramos, por um momento. Um toque mágico, feito com gente comum e histórias do cotidiano.
Em Dimension, Doree pega três ônibus para visitar o marido na prisão. Ele está preso, ficamos sabendo, porque matou os três filhos do casal quando ela passou a noite na casa dos vizinhos, para fugir de sua violência. "É sua culpa, foi você que provocou isso", ele diz, quando ela encontra os corpos das crianças. O que se passa com ela, por que vai visitá-lo, ela se pergunta, incapaz de não ir.
Alice não foge da tragédia, não procura soluções fáceis, nem apela para o fantástico ou o transcendental. Ela investiga a alma humana com coragem e integridade.
Em Meninos e Meninas a personagem principal enfrenta o dilema de crescer. A história se passa em uma fazenda de criação de raposa. A menina se considera a ajudante natural do pai, sendo mais apta para as tarefas de que seu irmão menor. Ela conhece o assunto, descreve com prazer os detalhes do processo de tirar o couro da raposa, fala do cheiro que impregna tudo nessa época, cheiro que acha reconfortante, como o das laranjas e dos pinheiros. Ela gosta do trabalho duro, gosta de se sentir forte e capaz. Mas quando adolescência se aproxima, sua família começa a questionar sua maneira de ser; ela contraria as expectativas da sociedade. A certa altura, como num rito de passagem, seu irmão passa a ser o ajudante do pai, e ela é afastada. Ela fica indignada mas, ao mesmo tempo, a despeito de si mesma, tenta entender e se adaptar a seu misterioso papel de mulher; olha-se no espelho imaginando se vai ser bonita. No fim, quando é descartada com as palavras: "Ela é apenas uma menina", ela já não protesta. "Quem sabe é verdade", diz.
Espero ter dado uma ideia de como Alice Munro escreve, de seus temas, de sua voz que cria um clima de intimidade e calma; e de sua linguagem cheia de vida, nuance e faces luminosas.
Numa entrevista à revista The New Yorker no ano passado, ela disse: "Fui criada para acreditar que a pior coisa que você pode fazer é chamar a atenção para si mesmo ou pensar que você é esperto, inteligente... a regra valia mais para as pessoas da roça, como nós, nem tanto para os da cidade." Talvez isso tenha influído na sobriedade de seus textos. No respeito ao leitor e aos personagens.
A escolha de Alice Munro para o Nobel de Literatura de 2013, além de merecida, indica uma acurada sintonia da Academia Sueca com os nossos tempos, quando atores e cenários, tradicionalmente periféricos, começam a reclamar seu lugar no primeiro plano, enriquecendo o texto e recriando as possibilidades da peça.
Nota do Editor:
Leia também sobre Alice Munro, no Digestivo, os textos "2013: mulheres escritores e suas artes", de Eugenia Zerbini, e "Família", de Elisa Andrade Buzzo.
Marilia Mota Silva
Washington,
6/11/2013
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