COLUNAS
Quarta-feira,
27/11/2013
O Muro de Palavras
Pedro Bidarra
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"A preocupação latente nesta exposição prende-se com a ambiguidade e com os paradoxos inerentes ao exercício da hospitalidade, com os postulados que definem e condicionam os usos da arquitetura. Os conteúdos e situações geradas pelos trabalhos ali presentes destabilizam as regras e os compromissos subjacentes à ocupação e uso do espaço para levantar questões acerca dos lugares do dia-a-dia, da forma como nos relacionamos com eles e como eles nos fazem relacionar com o outro. Na intimidade que estabelecem entre lugar e ocupante cada um dos trabalhos exerce formas de hospitalidade. Seja para evidenciar os conflitos inerentes ao seu exercício ou para lembrar a urgência da sua aplicação, para instigar encontros inesperados ou para promover oposições, ou convergências, ou combates, ou consensos."
Texto de um curador.
A maior barreira à entrada no mundo da arte, e nos museus e galerias que a celebram, sempre foi, para mim, o muro de palavras que o envolve. Um muro erigido por críticos, jornalistas, curadores, comissários e às vezes pelos próprios artistas; um muro de palavras que não comunica.
Na semana passada fui gentilmente convidado para falar no Encontro Museus e Monumentos, no Convento de Cristo em Tomar, sobre comunicação. Aparentemente, neste nosso mundo sem dinheiro, a principal preocupação dos gestores da cultura é atrair novos públicos para a sua causa: para a arte e para os eventos culturais. O encontro era sub-titulado "Comunicar, Inovar, Sustentar". A minha apresentação chamou-se O Muro de Palavras que é também o título de um documentário que tenho estado a preparar.
Como é sabido, o mundo da arte é, tendencialmente, alérgico ao marketing. E com toda a razão. O marketing é uma prática que tem como objectivo criar vantagem e apelo nos produtos para atrair consumidores. Apenas uma parte do marketing é comunicação; a parte mais cara mas não a mais importante. A mais importante é o desenho do produto ou do serviço de modo a satisfazer necessidades do consumidor. Não é, obviamente, esse o papel da arte. Pelo menos não é esse o seu papel imediato. Talvez seja o de satisfazer as necessidades da comunidade ou da sociedade mas, para o fazer, nem sempre satisfaz as necessidades do dia, do contemporâneo; as necessidades das instituições e pessoas com alicerces na convenção e no status quo. O benefício das artes e dos seus conceitos só mais tarde são visíveis na sociedade. Nesse sentido podemos ver a arte como um investimento que só rende lá longe. Ao contrário das invenções, que são mantidas secretas nos laboratórios até chegar o momento da sua utilidade brilhar à luz do dia, a arte e os seus conceitos, para cumprirem a sua missão, têm que ser públicos. "Se uma árvore cai na floresta e não houver lá ninguém para ouvir, se não houver um tímpano para vibrar, a árvore não faz barulho" diz-nos um provérbio chinês. É por isso que a comunicação é precisa.
Não que os textos herméticos, sofisticados e complexos não tenham valor e não tenham que ser escritos; não que as obras não tenham que ser analisadas e contextualizadas; mas estes textos que aparecem em jornais, catálogos e na comunicação, e que constituem, muitas vezes, o único interface com o mundo, não têm valor comunicacional para os novos públicos que os museus, as galerias e a arte procuram. O muro de palavras que cerca o mundo da arte e que impede o neófito de entrar, tanto quanto impede os que lá vivem de olhar para o resto do mundo, é o contrário de comunicação.
"O pós-estruturalismo, com origem linguística no francês, tem uma obsessão por palavras que o torna incompetente para iluminar qualquer forma de arte que não seja a literatura [.] uma das razões para a actual marginalização das belas artes radica no facto de os artistas falarem para outros artistas e para um círculo fechado de hip cognoscenti que perdeu o contacto com o público em geral, cujos gostos e valores eles caricaturam e troçam", diz-nos a Camille Paglia no seu livro Glittering Images.
No documentário O Muro de Palavras, que estou a produzir, pedimos a pessoas para lerem textos que acompanham as obras de artes e as exposições. Mostramos textos de crítica, de anúncios de eventos culturais, textos dos curadores de exposições, comunicados à imprensa e artigos da imprensa especializada e perguntamos aos sujeitos que os leram do que tratam? que dúvidas têm? o que não perceberam? o que esperam encontrar na dita exposição? e se têm ou não vontade de ir vê-la?
Textos como o que está transcrito no início deste texto.
As pessoas que recrutámos para este documentário são cidadãos com formação universitária, que viajam e que têm hábitos de leitura. Pessoas acima da "média", portanto, como a Susana: formação superior, psicoterapeuta, 40 anos, dois filhos, vive na grande Lisboa; não tem hábito de ir a exposições e museus a não ser quando convidada para um evento de croquetes, o que acontece 1 vez por ano, mas vê imagens de arte e design nas redes sociais, Pinterest e noutros sites; tem livros de arte em casa. Ou como o Miguel: formação superior, gestor, vive em Lisboa, leitor compulsivo de romances e dos clássicos; não tem amigos artistas nem frequenta meios intelectuais; não foi a uma única exposição ou museu no último ano; viajante frequente, visita tudo o que é museu e monumento por esse mundo fora.
A estas e a outras simpáticas cobaias demos a ler os textos que referimos e percebemos que as palavras não ajudavam, não abrem portas, não iluminam antes pelo contrário. Percebemos que os textos, ao cercar o mundo da arte de vocábulos e conceitos nem sempre entendíveis para o público não habitual, o afasta em vez de atrair. Obscurece em vez de iluminar.
Muitas serão as barreiras a remover para que as pessoas que têm capacidade para entender o fenómeno cultural e artístico tenham também vontade de o procurar. A comunicação é uma das maiores.
Mas tem que ser assim? Haverá, como há na cabeça de muitos dos habitantes deste chamado "mundo da arte", apenas dois tipos de texto: o elitista e o infantilizado? A comunicação e a sociedade não é tão binária como estas pseudo cabeças a vêem.
Para atrair novos públicos não é necessário fazer arte ou produzir obra que o público goste ou queira ver - isso é o que faz o marketing de produtos quando os molda aos gostos e necessidades dos consumidores. Trata-se sim de revelar a obra através de uma comunicação didática, entusiasmante; uma comunicação que a ilumine e que ajude o neófito a ler, ou pelo menos a querer ler a obra; uma comunicação que veicule, para os novos consumidores, os benefícios de as ver e entender.
Nem toda a gente nasce preparada para a arte. Como nem toda a gente não nasce preparada para a matemática. Isto não significa que não possa explicar-se uma equação, um problema e a sua resolução a quem não é génio ou a quem não entende intuitivamente a matemática. Isto faz-se com boa comunicação.
O curioso e paradoxal no muro de palavras que envolve a arte e a cultura é que a arte europeia começou por ser comunicação ao serviço da iluminação da palavra. Foi esse afinal o seu papel durante séculos, iluminar o que não se entendia, explicar, mostrar o que estava inacessível; abrir ao público em geral - e geralmente analfabeto - o difícil mundo de palavras e conceitos que era (e é) a religião. Durante séculos uma das principais funções da arte na cultura europeia foi ajudar a trazer às igrejas, e à fé, públicos renitentes que não chegavam lá pela palavra.
Duchamp, numa entrevista à BBC no fim da vida, dizia que a arte se assemelhava cada vez mais à religião. É verdade. Uma religião das mais herméticas. Uma religião com os seus acólitos, com as suas diferentes igrejas e capelas, como os seus santos, os seus praticantes, os seus sacerdotes e os seus sábios que falam com outros sábios e que olham, ao longe, para o povo analfabeto e incapaz de entender o mundo de rituais verbais e ideias feitas que existe nas suas caras, vazias e frias catedrais. Como dizia um director de museu, com grávitas, "a arte é uma coisa muito séria, com a arte não se brinca". Soa mesmo a religião.
"[Em Roma] os frescos e as pinturas das igrejas estão no centro das conversas, as pessoas comprimem-se para ver as novas obras, esperando, por vezes horas, para atingir a soleira da porta das igrejas", diz-nos Gilles Lambert num texto sobre Caravaggio.
Foi o que aconteceu com a estreia do Martírio de S. Mateus de Caravaggio na Igreja de S. Luigi dei Francesi no início do 600. O povo fez fila para ir à Igreja ver a "palavra". A palavra difícil, distante, iluminada pela arte.
Hoje a arte, uma religião com os seus dogmas, os seus textos herméticos, os seus mistérios e eucaristias, se quer mais fiéis terá que utilizar "truques" para iluminar as suas obras; como o cristianismo fez quando convocou as artes para iluminar a palavra.
Talvez, numa inversão da história, seja o tempo da palavra que ilumina. Talvez a palavra possa ser uma chave e não o muro que impede a entrada de mais fiéis nos museus.
Nota do Editor:
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Escrever é Triste.
Pedro Bidarra
Lisboa,
27/11/2013
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