COLUNAS
Quarta-feira,
18/12/2013
O julgamento do mensalão à sombra do caso Dreyfus
Humberto Pereira da Silva
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1.
Alfred Dreyfus (1859-1935), oficial de artilharia do exército francês de origem judaica, foi acusado em 1894 de ter espionado para os alemães, logo após a derrota francesa na Guerra Franco-Prussiana (1870-71). Julgado, foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. Mas o caso Dreyfus, como passou à história, está inserido num contexto de nacionalismo e revanchismo que assumem características de antissemitismo. Incidente que se circunscreveria ao âmbito militar, acabou assumindo conotações sociais e políticas que dividiram a sociedade francesa do final do século XIX.
O caso é que foram levantadas suspeitas de que Dreyfus era inocente, e que ele não passava de mero instrumento numa situação em que a derrota para os alemães havia ferido o orgulho francês e instigara tensões entre monarquistas clericais e antimonarquistas. A questão, então, era, por um lado, a de encontrar um bode expiatório (um oficial judeu no exército francês) e, por outro, abalar os alicerces da Terceira República, criando assim condições para a restauração da Monarquia.
Em 1898 as evidências de inocência levaram a um novo julgamento. A sentença anterior, no entanto, foi mantida, o que levou o escritor Emile Zola a publicar no jornal literário L´Aurore uma carta aberta ao Presidente da República, Felix Faure, intitulada J´Acuse! (Eu acuso!) em defesa de Dreyfus.
Escritor aclamado, Zola colocará seu prestígio em jogo na defesa de uma causa. Além dele, outros literatos, como Anatole France, defenderão abertamente Dreyfus. Nessa defesa, a definição do que a partir de então passou a ser entendido como o papel do "intelectual engajado": aquele que, diante de questões sociais e políticas, não se exime e usa sua pena como florete em defesa de uma causa.
O caso Dreyfus e a posição de Zola, então, serviram de exemplo para situações de ordem política ou social nas quais cabem ao intelectual sair de sua torre de marfim e se manifestar publicamente. Ainda na França, o exemplo mais notório foi o de Jean-Paul Sartre, após a ocupação nazista.
O caso Dreyfus, bem entendido - coberto por inevitáveis paixões de ambos os lados -, não se encerra com a posterior reabilitação; com a vitória do bem sobre o mal: os antissemitas não deixaram de existir na França e algures, tampouco julgamentos em decorrência de situações sociais ou políticas se imunizaram do componente passional.
Na mesma França, o julgamento e fuzilamento do ideólogo antissemita Robert Brasilach, após a libertação, é o caso que mais despertou paixões. O que importa, contudo é que intelectuais de prestígio se sentiram no dever de manifestar posição. No caso Brasilach, os escritores Maurice Mauriac e Albert Camus.
2.
Dos acontecimentos recentes da vida política brasileira, o escândalo do mensalão é o que mais chama a atenção. Julgados, os nomes de proa foram condenados à prisão e, agora, ao mesmo tempo em que cumprem a pena, despertam calorosas discussões sobre as condições do julgamento, tanto quanto o que este traz de pedagógico na política brasileira. A se pensar na posição dos intelectuais nesse julgamento, tenho em vista o filósofo Renato Janine Ribeiro. De todos os intelectuais que acompanhei no caso mensalão, assim creio, aquele que melhor se imbuiu do sentido dado por Zola numa situação que exige, de fato, o uso da pena como florete.
Janine abriu uma frente de discussão na imprensa, com artigos nos jornais Valor Econômico e Estadão e em posts no Facebook que geraram intensos debates. Destaco aqui o que ele descreveu no Facebook como três caminhos diferentes de condenados do mensalão: José Genoíno, José Dirceu e Henrique Pizzolato.
Para Janine, Genoíno "pela convicção de muitos de ser inocente, aparece como vítima, como alguém que desperta nossa piedade e solidariedade humana", já Dirceu "se prepara para reverter a condenação judicial pela via da luta política; vai lutar e poderá virar herói", enquanto Pizzolato "pelo dossiê que levou para a Itália, pela chance de ter um julgamento sem pressão política, pode gerar um resultado que desacredite o que o Supremo brasileiro decidiu". Em seguida ele afirma que Genoíno suportou a prisão política, na ditadura, mas não suporta ser preso comum; ao contrário, Dirceu entende os dois casos como prisão política. E conclui seu post com a mensagem de que a história não terminou.
3.
Possivelmente o mensalão não divida a sociedade brasileira como o caso Dreyfus na França; provavelmente os acusados do mensalão estejam mais envolvidos nas acusações que lhe são imputadas do que Dreyfus; é razoável supor, ao contrário de Janine, que a situação de Pizzolato na Itália não dará resultado que desacredite o que foi decidido aqui; é sensato conjecturar, mesmo, que Janine, impulsionado por paixões - não se pode esquecer que ele fez parte do governo Lula, como diretor da Capes - turbilha o caso e aponta para o que muitos enxergam de outra maneira. Ressalto, contudo, que ele não faz outra coisa senão o que cabe a um intelectual efetivamente envolvido em seu tempo: se posicionar e defender sua posição.
Em suas intervenções, ele jamais defendeu, como Zola com Dreyfus, a inocência ou culpabilidade dos acusados. Sua posição diz respeito, em texto no Valor Econômico a outra questão: a prisão dos acusados e seus efeitos pedagógicos. Para ele, o efeito foi apenas fortalecer cada lado em suas crenças; ou seja, não houve efeito pedagógico. Para quem odeia o PT, o julgamento foi a ocasião para se vingar do partido, com a desculpa da justiça; já para quem apoia o PT, o ocasião para o esfriamento de uma discussão séria sobre o por quê de o partido ter relativizado a preocupação com a ética, uma vez no poder.
Aqui, então, retomo as palavras de seu post: a história não terminou. Ora, se o julgamento não gerou efeito pedagógico, a história está para ser contada. Como cada lado não aprendeu com o caso, houve apenas o fortalecimento de crenças, nada sinaliza que José Dirceu não venha a se tornar herói. A posição de Janine nesse ponto é intrigante, mas coerente. Ele tem em vista a história. Basta pensarmos em casos como Robespierre, na Revolução Francesa, ou Tiradentes, na Inconfidência Mineira. Para julgamento ulterior, não há predeterminação.
4.
Certo, mas assim se posicionando, ele traz a baila, num caso envolto em paixões e com interesses nunca suficientemente conhecidos, questões que passariam ao largo. Para um intelectual ciente de seu papel, é o que lhe cabe. Claro, como Zola, com a compreensão de que o que está em jogo é seu prestígio. E com a compreensão também de que, em outro momento histórico, não está sujeito a passar pelo que o escritor francês passou: após a publicação de J´Acuse! foi processado por difamação e condenado a um ano de prisão. Assim, entendo que as manifestações de Janine estão no contrapé do que há pouco era chamando de "silêncio dos intelectuais". Estimulados por ele, ousemos enfrentar e discutir as questões de nossa época.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
18/12/2013
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