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Terça-feira, 14/1/2014
Barba ensopada de sangue: a ilusão é humana
Isabella Ypiranga Monteiro
+ de 4500 Acessos

Dizem as enciclopédias que Fata Morgana - do italiano fada Morgana - é o evento responsável por fazer com que objetos vistos no horizonte, como, por exemplo, ilhas, barcos e icebergs, adquiram uma aparência alargada e elevada devido à inversão térmica. Não há grande mistério nisso. Provavelmente, em maior ou menor grau, o leitor já testemunhou a ilusão de ótica durante um passeio corriqueiro pela orla. Em termos menos científicos, também é bastante comum nos depararmos com um outro gênero de miragem ao longo da vida. São aquelas metas que planejamos alcançar e que teimam em surgir diante de nossos olhos como promessas de solução para os conflitos humanos. Pode ser um emprego, casamento, filhos... Oásis, muitas vezes, tão inatingíveis quanto a tal linha do infinito. Com o personagem principal de Barba ensopada de sangue (Companhia das Letras, 2012), quarto e mais recente romance de Daniel Galera, não é diferente.

O enredo é simples. Um professor de educação física de trinta e poucos anos deixa Porto Alegre para viver em Garopaba, pequeno balneário de Santa Catarina, após o suicídio do pai. Com o firme propósito de descobrir a verdade sobre a morte de seu avô, um sujeito misterioso que teria sido assassinado décadas antes na mesma cidade, o protagonista aproveita ainda a distância que separa sua nova casa dos parentes e amigos para escapar da conturbada relação com o irmão e esquecer uma vida amorosa pregressa desastrada. A mudança geográfica é, na realidade, consequência do isolamento psíquico em que pretende imergir; a visita ao passado familiar, uma tentativa velada de reaver a própria identidade. Enquanto procura preencher seus buracos emocionais, ele vai acabar aprendendo que, como diz o velho clichê, o caminho pode ser mais interessante que a chegada.

Galera já havia explorado o argumento "recomeçando em outro lugar" no aclamado Cordilheira, embora, talvez, de uma maneira mais assertiva. Se o primeiro título da coleção Amores Expressos, publicado também pela Companhia das Letras e vencedor do Prêmio Machado de Assis 2008, ajudou a colocá-lo em evidência nas prateleiras das livrarias, Barba... garantiu de vez seu posto em um seleto grupo de novos e influentes autores. Não por acaso, o paulistano de ascendência gaúcha foi eleito um dos vinte jovens escritores brasileiros de maior destaque em 2012 - ao lado de figuras como Michel Laub, Ricardo Lísias e João Paulo Cuenca - pela prestigiada revista literária britânica Granta. O investimento pesado da editora nesse atual fenômeno da literatura nacional rendeu bons frutos. O livro levou o Prêmio São Paulo de Literatura e o Jabuti de terceiro melhor romance do ano passado, além de ser um dos finalistas do Prêmio Portugal Telecom 2013 na mesma categoria.

Barba ensopada de sangue pode ser encarado, na verdade, como um epítome da ainda acanhada obra de Daniel Galera. O estilo pessoal e muito bem definido do autor, qualidade incomum em artistas de parcos 34 anos e com relativa pouca experiência no meio, se impõe linha após linha desse último projeto de forma incontestável. Diálogos ágeis e um já característico realismo hiperdescritivo, em que cada vírgula parece gritar sua carga de relevância para a história, se misturam à aproximação com elementos ligados à natureza, outro tema presente em alguns de seus trabalhos anteriores como Cachalote, uma parceria com o quadrinista Rafael Coutinho, e Até o dia em que o cão morreu, cuja primeira edição saiu pela Livros do Mal, pequena editora cofundada pelo escritor em 2001.

"Ela se vira de costas e ergue a blusa. Está escrito em letras grandes, atravessado na lombar, DEUS ESTÁ MORTO.
Essa tatuagem é estranha.
Legal, né? Eu adoro Nietzsche.
Quem é Nietzsche mesmo?
É um filósofo. O bigodudo. Uma amiga minha botou essa frase no Orkut e eu gostei. Li um livro dele. 'Além do bem e do mal'.
Não li.
Vamos para o quarto, atleta.
Quanto é?
Cento e cinquenta.
Tu custa o mesmo que o vinho? Isso não tá certo.
Ela não diz nada".

Cachorros, aliás, costumam assumir papéis-chave nos romances de Galera. Para desvendar o enigma envolvendo o assassinato do avô Gaudério, o protagonista de Barba... conta com a companhia constante de Beta, cadela que funciona como uma espécie de derradeiro elo com seu pai. O mar e suas idiossincrasias, imprescindíveis na composição desta narrativa em específico, também receberam atenção especial do autor. Ele revelou durante entrevista ter morado um ano em Garopaba, o que explica como conseguiu descrever o clima da cidade litorânea fora de temporada tão vividamente. Esses ingredientes combinados acabam incitando a memória afetiva do leitor - seja pela lembrança daquelas férias de infância na praia ou pela saudade de um bicho de estimação querido -, servindo para criar uma identificação instantânea com o que está sendo relatado. E não são os únicos.

"O mar finalmente desponta no término da avenida principal da cidade, uma lasca azulada e fria no fim da reta de asfalto que cintila sob o sol latejante de uma da tarde. É o dia do seu aniversário. Trafega em segunda marcha, janelas abertas e ventiladores ligados para arejar o interior do carro num dia sem vento, o zunido abafado dos ventiladores misturado com o ronco tímido do motor 1.0 e a música do CD do Ben Harper, quase parando antes dos quebra-molas para não raspar o fundo do automóvel sobrecarregado".

Achou estranho o nome do protagonista não ter sido citado uma única vez ao longo deste texto? A culpa não é de quem vos escreve agora, mas sim do próprio Daniel Galera. O jovem professor de natação - ou "nadador" como é chamado pelos seus interlocutores - é tratado no decorrer de 422 páginas sempre pelo pronome pessoal reto ele, o que transmite a ideia de que qualquer um de nós poderia ocupar aquele lugar. A terceira pessoa, a propósito, é descartada apenas nas inusitadas notas de rodapé. Apesar de um pouco extensas, tais passagens cumprem bem a função de pontuar a relação dos demais personagens - sob a perspectiva deles - com o nosso herói anônimo. Outro recurso, desta vez bastante sutil e exterior ao conteúdo do livro, aparenta ter sido engenhosamente adotado a fim de causar empatia no público. Cercado de uma forte campanha midiática, o lançamento de Barba... inovou ao distribuir exemplares personalizados, com direito a capas de três diferentes cores - azul, verde e vermelho. Não havia a necessidade de apelar ao truque marqueteiro para vender o romance. O autor tem fôlego o bastante para despertar sensações de déjà vu com suas palavras e, assim, atrair mais leitores. Os homens, em particular, vão se rever nos trechos carregados de humor típico do universo masculino.

"Oi. Pensei muito antes de te escrever porque aquela última vez que te liguei ao saber do teu pai tu me deixou bem claro que preferia não ter mais notícias nossas. Pode ignorar esta mensagem se preferir, do mesmo jeito que ignorou as outras, e desculpa se eu estou te importunando. Mas eu suspeito que essa tua atitude é só para que as pessoas acabem te procurando, porque tu não quer falar primeiro, sabe? Se eu estiver enganada só vou piorar tudo, mas... resolvi correr o risco".

Com os direitos de tradução negociados para quatro países ainda antes de sair no Brasil, Barba ensopada de sangue mostra como é possível falar de fantasia abusando do realismo contemporâneo e, talvez, justamente nesse ponto esteja o seu quinhão poético e maior mérito. Portador de uma rara doença congênita que o impede de reconhecer rostos, o protagonista busca em cada pessoa com quem cruza - entre elas, uma garçonete e o filho pequeno, os alunos de natação, o divertido amigo budista e a secretária de uma agência de turismo - decifrar a si mesmo. A semelhança física com o ancestral morto, que chega, inclusive, a assustar os antigos moradores do balneário, nada mais é que uma sofisticada metáfora desse desejo inconsciente. Embora esclareça os mistérios a que se propôs investigar, a conquista provoca nele o exato efeito das Fata Morgana que consegue avistar das areias de Garopaba. De perto, miragens não são o que parecem ser. Sem as respostas de que precisa, só resta ao "nadador" reabrir um ciclo atávico e, dessa forma, se reconciliar com a própria trajetória e cumprir seu destino. Quem já não experimentou algo similar? Afinal, de ilusão, todos nós vivemos.


Isabella Ypiranga Monteiro
Rio de Janeiro, 14/1/2014

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