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Terça-feira,
7/1/2014
O Hobbit - A Desolação de Smaug
Duanne Ribeiro
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O Hobbit - A Desolação de Smaug (2013) é o segundo filme da trilogia de Peter Jackson que adapta ao cinema o livro O Hobbit, de J.R.R. Tolkien. Pouco depois de lançado, foi atacado por uma crítica da revista The Atlantic: seria "fanfiction ruim" e nada além disso. De fato, não é só uma "adaptação": Jackson reinventa a história. Traz novos personagens e novo direcionamento. Para o crítico, isso basta para reduzir a história à megalomania criativa de um fã com acesso à Hollywood. Mas basta? Esta coluna quer defender a autonomia de cada obra, até que vejamos qual é a diferença fundamental, não cosmética, entre elas. Adianto a conclusão: em Tolkien nos fascina a simples aventura; em Jackson nos sufoca um Destino.
A tese da Atlantic se baseia em: uma adaptação cinematográfica deve representar o original, transmiti-lo com precisão. Isto é particularmente visível já no primeiro parágrafo do artigo: "Há dois modos óbvios de falhar na adaptação de uma obra com um grande e apaixonado grupo de fãs: o diretor pode se sentir tão coagido pelas expectativas que faz uma adaptação muito literal; ou pode se deixar levar pela ampliação da história original, inserindo referências de obras relacionadas e assumindo que o apetite dos fãs é insaciável". Há uma escala aqui: o bom diretor, podemos crer, se põe no meio, não cria de menos nem de mais. O erro do crítico é supor que o espectador tem sempre em vista o livro original.
Pois, com efeito, a obra-filme-trilogia O Hobbit é independente da obra-livro com mesmo nome, ainda que tenha surgido dela. A produção cinematográfica não é feita com o objetivo de ser comparada com a original; nem exige comprovação de que se leu Tolkien para poder comprar o bilhete. Ela se expõe ao público sozinha: é digno que a julguemos nesse sentido, pelos seus próprios critérios. Ter lido os livros - ou até dar atenção a críticas de cinema como essa e a da Atlantic - acrescenta perspectivas, no entanto, por si não salva nem condena.
A Desolação de Smaug é dinâmico e divertido, e esse é seu valor principal. Possui um tom mais lúdico, menos sombrio, do que O Senhor dos Anéis (algo já presente no primeiro da série) - o que é o jeito pelo qual o diretor traduz a feição infantil, mais ingênua, desse primeiro livro de Tolkien. Carroça puxada por coelhos, barril brincando de boliche com orcs, façanhas absurdas de tanto engenho e habilidade - tudo isso colabora para que o filme seja levado menos a sério, de propósito, e mais como uma aventura fantástica no sentido mais leve do termo.
Na verdade, o que Jackson tem sempre em vista é a trilogia cinematográfica de O Senhor dos Anéis. Tolkien escreveu sem peso. Os três livros que escreveria depois tornariam complexo aquele universo inicial. Jackson não pôde (ou não quis) usar essa possibilidade. Por imposição da indústria ou por constrições pessoais, teve de adequar sua proposta à forma de um "prequel" à trilogia primeira (estrutura comercialmente "mais segura", usada anteriormente por Guerra nas Estrelas e outros). Sendo assim, se ateve a um tipo de coerência interna: tudo, ou quase tudo, ocorre como antecipação, até explicação, da série posterior. É razoável julgar os filmes como as seis partes de uma mesma obra.
Assim, a organização dos exércitos escuros são as primícias do conflito que virá. Assim, Gandalf propõe retomar a caverna invadida pelo dragão já em estratégia para debelar o Mal que adivinha chegar ao mundo. Em Jackson, de jeito nenhum é uma viagem só pelo ouro, nem há combates fortuitos e genéricos entre as raças - há uma viagem e há uma guerra. As duas trilogias demarcam dois movimentos dessa mesma narrativa. Trata-se de uma via única.
Talvez neste ponto possamos enxergar o problema essencial do filme em relação ao livro, para além de diferenças mais pontuais. Na medida em que tudo tende a um gesto final (a destruição do Anel, a salvação da Terra-Média), é como se tudo tivesse sido determinado e ocorresse de acordo com um fado. Não há saída, o mover da História move inelutável os personagens. O Hobbit original não relega nenhuma carga a O Senhor dos Anéis. Se Bilbo tivesse ido à esquina, pego o Anel e retornado, daria na mesma (ou daria em menos, pois aí ele não passa de um anel de invisibilidade). Seu percurso até lá e de volta outra vez é aventura, não missão.
Em suma, o que se perde é o núcleo original: em Tolkien nos fascina a aventura singela; em Jackson nos sufoca todo um Destino.
Modo de Falhar em uma Adaptação
Falando de Alice no País das Maravilhas (2010), filme de Tim Burton, desenvolvi um critério: uma adaptação é ruim se reduz a obra original, se a modifica de uma maneira tal que ela perde seus atributos fundamentais (Burton fez isso). É esse o caso de O Hobbit - A Desolação de Smaug?
Por um lado, não. Pode-se perceber desde O Silmarillion e através dos dois livros que vimos tratando o desenvolvimento de uma tema único, que se cumpre enfim ajustando a criação à harmonia inicial. Dessa forma, essa predestinação está em alguma forma nas obras de cinema, e traduzem Tolkien.
Por outro, sim. Mesmo que seja exagerado dizer que os personagens só cumprem seu destino, de fato Gandalf assume o papel de grande maestro, guiando cada um ao seu dever. Em Jackson, há caminho fora do plano do mago? Sinto em O Senhor dos Anéis, o original, muito mais descontrole. A Sociedade do Anel é uma missão desesperada, na qual o menos adequado dos seres acaba com a obrigação mais elevada. Se chegar a Mordor é destino de Frodo, isso expressa não que esse é um alvo para o qual foi talhado, mas que é seu fardo e dele não pode se livrar.
As tendências da História são adversas, O Senhor dos Anéis trata de mudar o que tudo indica que seja o destino - assim como O Hobbit começa e termina com o enriquecimento do cotidiano, antes aparentemente fechado e satisfatório. O mundo não justifica a aventura; a aventura se faz para ressignificar o mundo.
Duanne Ribeiro
São Paulo,
7/1/2014
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