Beijo surdo | Ana Elisa Ribeiro | Digestivo Cultural

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Sexta-feira, 10/1/2014
Beijo surdo
Ana Elisa Ribeiro
+ de 6700 Acessos

O que é que a gente procura? E se não está procurando, como é que se dá conta de que encontrou? Arrisco-me se disser: procurava um beijo surdo. Demorei a me arranjar com esta expressão e não sei se as explicações que dei a ela foram satisfatórias. Talvez seja uma experiência muito pessoal para ser traduzida ou narrada a alguém, mas eu tentei. Um beijo surdo.

Ali pelos meus 19 ou 20 anos, eu encontrei uma pessoa - de quem nunca fui, oficialmente, nada - que me arrancou um beijo, no meio da rua, encostada num carro cinza, sob uma ventania que eu acho que chegou só porque estávamos ali. Ele veio falar comigo sobre qualquer coisa, saíamos de uma festa, talvez, na região centro-sul da capital, e ele achou que devia me beijar na boca, bem no meio da rua vazia, num junho ou julho de fim de século. O desabitado do lugar, as folhas no chão, o frio da estação, o barulho do vento e a escuridão da noite foram temperados por um beijo surdo.

Não era um beijo comum. Desses eu já conhecia há tempos, desde alguns anos, sem importância, eu diria. O beijo surdo aconteceu porque todos os sons do mundo, assim como todas as percepções que eu podia ter, sumiram. Pelo tempo de duração do beijo, que, por sinal, é impossível de mensurar, nada mais aconteceu na vida. Não senti os pés, nem os ruídos, nem medo, nem insegurança, nem o alarido de qualquer trânsito urbano, nem pessoas indo ou vindo na esquina adiante, nem algum ônibus, nem música vinda da festa, nem o toque das presilhas da calça na lataria do carro. Nem o salto do sapato. Nada. O beijo me ensurdeceu. O beijo trancou todos os meus sentidos e levou toda a minha vida para um encontro de lábios. E não foi objetivo ou intencional. Era um Encontro. Os meus cabelos ficaram brancos naquele dia. E brandos. Eles voavam nos nossos rostos. Mas não incomodavam. Talvez alguém narre isso como os sinos, a flauta, a harpa, o piano, as trombetas de algum lugar mágico, mas eu fiquei, por algum tempo, no beijo surdo.

Esse beijo aconteceu mais algumas vezes, com a mesma pessoa. Ele se transformou em muitas coisas, mas ele nunca permitiu que aquela interação fosse real. Nunca fomos namorados ou jamais assumimos qualquer relação socialmente. Uma lástima. Mas os beijos eram surdos. Mesmo muitos anos depois, eles eram surdos, mesmo toda vez que nos encontrávamos, ao longo de uma vida fragmentada e cheia de tropeços.

Mas acho que passei a vida procurando outro beijo surdo, de alguém mais palpável. A curiosidade de saber se somos capazes de outras interações com beijos surdos me deixava esperançosa. Será possível? Como será? Uma sorte? Um acaso? Quando é que acontecem os beijos surdos?

Décadas depois, mesmo sem qualquer prenúncio de algo tão cintilante, mesmo sob as nuvens de uma vida de desvios e escorregões, ocorre que descubro ser possível viver um outro beijo surdo. Não do mesmo modo, mas também sem firmeza ou continuidade. Tarde da noite, perto dos carros, numa avenida movimentada, sob vento e ponteiros de relógio, um beijo me ensurdece completamente, ao ponto de os ônibus vermelhos passarem sem dar um pio, como se fossem trens-bala moderníssimos, de primeiro mundo. Embora minhas mãos tocassem o cabelo meio grande dele ou alguma parte do seu peito, eu não sentia outras conexões com o mundo ou a avenida. O segurança na guarita parecia não existir, enquanto nossas bocas procuravam uma sintonia meio ancestral. Não era lânguido nem voraz, era surdo. Era uma espécie de ensaio do nada, concentrando nossas batidas cardíacas em algum lugar dos nossos rostos, de olhos cerrados. É importante frisar o quanto os olhos fechados são importantes para o ensurdecer.

Era mentira. Era tudo mentira. Não duraria nem mais cinco desses beijos. Mas era, de novo, um beijo surdo. As pessoas precisam estar ali, para não estarem. Os ouvidos se tampam. Algo que talvez se pareça com o mergulho, só que sem falta de ar. Ao contrário, respirando o ar do outro, sorvendo os pulmões do outro. E doando nosso ar. É como ouvir apenas os sons do corpo por dentro.

De novo? Como era possível? Por quê? Novamente, não vai funcionar. A gente ser quem é, com o tempo, vai se tornando um grave defeito. As pessoas não sabem o que procuram. Ou não sabem o que querem, talvez. Ou talvez percebam que querem apenas o que podem pegar, que é pouco. O que escapa fica para os delírios da adolescência. O que é um beijo surdo diante de tanta dificuldade?

O cheiro dele me entrava pelas narinas. Não é fácil de acontecer. E não era perfume. Era o cheiro dele. Uma espécie de fragrância da existência daquela pessoa e só muita proximidade física pode dar a perceber. No beijo surdo, talvez os cheiros se exaltem.

Um beijo surdo é um fenômeno da natureza? Tem a frequência de um cometa? Como ele pode ser fisiologicamente explicado? Quantas vezes teremos beijos surdos e nos daremos conta deles? Mais década? Mais ano? Os beijos surdos são insustentáveis. Quem os pode cultivar, diante de tanto para se prestar atenção? É preciso desatenção para cair num beijo assim. Com quantos intervalos?


Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte, 10/1/2014

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