COLUNAS
Quarta-feira,
15/1/2014
É o Fim Do Caminho.
Marilia Mota Silva
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Sozinho, em algum ponto de oceano Índico, um homem (Robert Redford) acorda com seu barco inundado. A água atinge sua cama e continua subindo velozmente. Um container à deriva colidiu com a embarcação, abrindo um rombo no casco. O homem não perde a calma. Com uma força que não condiz com sua idade (77), desprende o container, remenda o casco, bombeia a água, enxuga e reorganiza tudo, sem desperdício de gestos ou palavras. Perfeito controle das emoções, competência, vigor, autonomia, um ar entre blasé e taciturno: o ideal masculino plenamente realizado.
O barco também é uma bela obra de desenho inteligente. Não sobra nem falta nada. Seus incontáveis nichos guardam recursos capazes de atender a qualquer emergência. Mas, com o rádio e os equipamentos de navegação destruídos logo na primeira cena, o homem navega, sem saber, rumo a uma violenta tempestade.
Tudo Perdido (All is lost) é o segundo filme que J.C. Chandor escreveu e dirigiu. O primeiro foi o ótimo Margin Call, sobre a crise financeira de 2008. São filmes muito diferentes mas que, de certa forma, se completam.
Margin Call é repleto de diálogos e personagens, trata de um assunto específico e atual, e se passa, quase inteiro, nos escritórios de Wall Street. Tudo Perdido tem um só personagem e pouquíssimas palavras; passa-se em alto-mar e, segundo seu criador, conta uma história mais universal: "É sobre uma pessoa frente a frente com sua mortalidade, questionando sua vida, seu lugar no mundo".
Mas o tema não se restringe a essa metáfora tradicional em histórias que se passam no mar. O filme fala desse momento, do estágio atual do capitalismo e seus efeitos na vida e na mente das pessoas, especialmente as que habitam o topo, os 1%. Se em Margin Call, eles saíram impunes (e bem pagos) da crise para a qual contribuíram imensamente, em Tudo Perdido somos lembrados de que, não importa o quanto capaz e bem sucedido alguém seja, não há lugar a salvo no planeta. Estamos no mesmo barco e viveremos as consequências do mundo que criamos.
Chandor diz que não pensou nisso quando escreveu o filme mas que, de fato, Redford representa a geração que viu crescer a disparidade econômica nos Estados Unidos: "Todas as coisas que aconteceram nos últimos cinco a dez anos, surgiram nos últimos trinta anos. Ë parte do legado dessa geração, para o melhor ou pior".
Quando, no começo do filme, Redford (seu personagem é identificado apenas como "Nosso Homem" nos créditos finais) desengancha seu iate do container que o tinha abalroado, dezenas de pares de tênis e bugigangas variadas flutuam enquanto o container afunda. Nada mais emblemático. Globalização, exportação de empregos para países com mão de obra barata, desemprego nos Estados Unidos e suas consequências, aumento dramático da distância entre ricos e pobres, encolhimento e empobrecimento da classe média, radicalização da direita, por aí. "Nosso homem" é um consumidor privilegiado, basta ver seu iate super-equipado. E sua sorte é decidida por um container vindo da Ásia.
Em outro momento, "Nosso Homem" procurando alguma forma de se localizar, encontra um sextante antigo, que nunca tinha sido usado. Com ele e mapas náuticos, consegue chegar na rota de navios comerciais, com a esperança de ser resgatado. Quando surge um navio carregado de containers, ele se anima, dispara os sinalizadores, grita, agita os braços. E vê passar junto dele como um totem de ferro, o cargueiro imenso, sinistro e cego. A solidão e o desamparo do homem, vendo o navio seguir indiferente, sempre na mesma velocidade, e em linha reta, nos lembra como nos sentimos, muitas vezes, como clientes, consumidores e cidadãos.
Outro momento interessante é quando o "Nosso Homem", já reduzido ao barco salva-vidas, no limite do desespero, vira a cabeça para trás, olhando o céu e exclama: Fuck! Ele não invoca poderes sobrenaturais, nem como interjeição; nenhuma crença vem em seu socorro, o que é honesto e coerente com o personagem.
Nessa altura o filme volta à cena de abertura, quando ouvimos a voz de Redford compondo uma carta de despedida e desculpas. Presume-se que escreva para a família e que deixou assuntos mal resolvidos, palavras a serem ditas: Vocês hão de concordar que tentei tudo. Vou sentir falta de vocês, me desculpem.
A velha geração (o lado vencedor, o homem americano branco, velejando sozinho em seu iate perfeito) direta ou indiretamente responsável pelas conquistas e estragos feitos no planeta nas últimas décadas, está de saída e lamenta, pede desculpas. É toda uma era que termina. E agora, o quê?
Por coincidência, outro filme que saiu nesse final de 2013, Nebraska, também tem como protagonista um ator de 77 anos e também fala deste momento na vida do americano, só que, neste caso, ele faz parte dos 99%, e a história se passa no meio-oeste.
Woody Grant (Bruce Dern) é um pobre-diabo, um fracassado: alcoólatra, pai relapso, ex-mecânico de carros que não pode mais dirigir. Sua mulher e seu filho mais velho querem colocá-lo em uma casa de repouso porque o homem escapa de casa sempre que tem chance. Ele acredita que ganhou um milhão de dólares e quer buscar o dinheiro em Lincoln, Nebraska, nem que precise percorrer a pé mais de setecentas milhas. O segundo filho, David (Will Forte) com um emprego fuleiro, recém-deixado pela namorada, cansada de sua pasmaceira, resolve levá-lo, por pena e pela oportunidade de ter um contato maior com o pai.
No caminho, eles visitam a cidade onde Woody viveu na juventude, e a família que ele não vê há décadas.
O filme, em preto e branco, é uma comédia, disse o diretor Alexander Payne, e a gente ri mesmo, mas é um riso dolorido.
Uma cena hilária e deprimente, por exemplo: a família está toda reunida para encontrar Woody. O irmão e os parentes mais velhos, todos homens, estão sentados assistindo ao futebol. A filmagem é feita do ponto-de-vista da televisão, o que nos dá a visão de todo o grupo. Eles não têm nenhuma expressão no rosto e permanecem em silêncio. Seja o que for que estejam sentindo, as perguntas que talvez queiram fazer, eles escondem. A certa altura, o irmão de Woody, finalmente, encontra algo para dizer. Eles trocam algumas palavras sobre os carros que tiveram, sem olhar um para o outro e voltam a fixar na televisão a mesma expressão vazia.
Comentei a cena com amigos americanos; uma boa oportunidade para compreender melhor esse aspecto da cultura deles, bizarro para nós, brasileiros, mais informais e espontâneos. Falei do retrato cáustico que o filme pintava, especialmente dos homens, como se eles fossem incapazes de se comunicar mesmo entre si, em família.
"Mas não houve exagero nenhum", disseram. "A situação é exatamente da maneira que o filme mostra. A televisão, os jogos de futebol e a conversa sobre carros é o jeito de evitar qualquer conversa que possa resultar em emoção compartilhada, ou que possa provocar uma opinião sobre algum assunto mais pessoal ou sensível do que a escolha de carros. Estoicismo é uma virtude altamente valorizada na cultura americana e a cena mostra o quanto repressiva ela pode ser. Especialmente entre homens mais velhos".
Mas a geração mais jovem também é maltratada: quem a representa são dois primos, nos seus vinte, trinta anos, muito obesos e imaturos; só falam de carro, de velocidade, e se acham superiores porque correm mais ou tem carro mais potente. Os dois só se mexem quando tentam roubar a suposta fortuna do tio.
Quase só há velhos na fictícia Hawthorne onde se passa o filme. Não há crianças. A casa onde Woody passou a infância, uma bela casa de fazenda, grande e confortável , está abandonada, caindo aos pedaços. Woody é a imagem do arrependimento, do fracasso. Ele responde a todas as perguntas sobre sua vida com um "Não sei, ou não importa, não faz diferença". O passado se desfaz e não há futuro.
Ainda assim, quando o filme acaba, a sensação que fica não é a de que está tudo perdido. Um lumezinho brilha na desolação do cenário cinza: o amor do filho, sua genuína humanidade, o sonho simples, a felicidade que não depende de fortuna. O milhão de dólares, afinal, não fez falta nenhuma.
Marilia Mota Silva
Pensacola, Fl,
15/1/2014
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