COLUNAS
Quarta-feira,
26/2/2014
Brasil em novo tempo de cinema
Humberto Pereira da Silva
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O Que se Move - Cartaz de divulgação
1.
O momento denominado Retomada do cinema brasileiro deu-se em meados dos anos de 1990. Com o desmanche dos anos Collor, só com a chegada de Fernando Henrique Cardoso ao poder e a aprovação de leis de incentivo fiscal foram realizados filmes que despertaram a atenção de público e crítica: Carlota Joaquina (1995), de Carla Camurati, O Quatrilho (1995), de Fabio Barreto, Baile Perfumado (1996), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, Cronicamente Inviável (2000), de Sergio Bianchi, então entre os filmes emblemáticos do período.
Com a Retomada, festivais importantes em anos anteriores ganharam novo estímulo - Gramado, Brasília -, assim como outros surgiram e foram impulsionados pelos ventos da nova conjuntura cultural - Tiradentes, Paulínia, Cine PE, entre outros. Ano após ano novos diretores despontaram e se firmaram; seus filmes instigaram discussões, foram objetos de acalorados debates no âmbito de uma nova crítica, que também surgiu e ganhou ressonância nesse novo contexto. O livro de Luiz Zanin Cinema de novo (2003), creio ser o balanço mais completo e sintético do que se realizou até Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles.
Passada a Retomada, a produção cinematográfica nacional se diversificou significativamente: comédias, temática histórica, dramas individuais, violência urbana dão o tom dos filmes que passam em festivais ou são exibidos no circuito comercial. Considerada a diversidade fílmica nos anos recentes, há um aspecto que merece especial destaque, depois da consolidação da produção com a Retomada. Sem que se precise o início - talvez Cinema, Aspirinas e Urubus (2005), de Marcelo Gomes, ou O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz -, o impulso renovador, a necessidade de se manifestar com certa ousadia nos planos formal e temático, tem contagiado uma geração que não se mostra em princípio com preocupação de fazer concessões.
Para essa geração recente, o cinema desponta como veículo de expressão artística, tanto quanto de termômetro de pulsões presentes ou de reavaliação de nosso passado. O ápice desse momento com sopro de ar fresco, creio, ocorreu no ano passado, com O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho.
Premiado no Brasil e no exterior, detonador de intensos debates, o filme de Kleber Mendonça revela ser mais um sintoma que reflete um novo tempo no cinema nacional do que um caso isolado, um projeto solto com qualidades amplamente destacadas pelos mais diversos seguimentos da crítica. Ora, os sinais do tempo anunciam que O Som ao Redor não é avis rara, que está na companhia de filmes que merecem tanta atenção quanto; destes, destaco O Que se Move, de Caetano Gotardo.
2.
Trata-se do primeiro longa metragem de Gotardo, que faz parte do coletivo paulista Filmes do Caixote, responsável por dois outros filmes que atestam a força do grupo: Trabalhar Cansa, de Marco Dutra e Juliana Rojas, e Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra. A filmografia do Filmes do Caixote, em especial O Que se Move, deixa no ar o espírito de desafio, de risco providencial ao campo artístico, sem que se sinta a contaminação de artifícios ou maneirismos de iniciativas antes de tudo pretensiosas.
O Que Se Move é uma fita que explora fait divers em torno da perda; no caso, do filho que, fruto do acaso, se aparta da mãe; esta, por sua vez, se culpabiliza pelo destino dramático ou trágico do filho. O cinema - e a arte em geral - mostrou esse tema das mais diversas formas. O que é verdadeiramente notável em O Que Se Move é que Gotardo não se intimida e concebe uma obra que perturba à medida que se procura, mas não se encontra similar, e assim deixa a sensação de frescor diante de uma narrativa desconcertante.
Claro, há referências, influências, mas O Que Se Move foi realizado de forma a diluir ingredientes e experimentar o novo, sem os cacoetes da experimentação pela experimentação. A narrativa flui de modo estranho e inesperado, até que o elemento surpresa se desfaz, sem que, contudo, o espectador perca o envolvimento com o que está por vir. Em cada cena, cada enquadramento, uma dimensão da vida que exige o máximo de atenção. Neste sentido, um dos filmes mais ousados de nossa recente filmografia; fruto de um momento que se revela poroso a iniciativas inovadoras.
Feito este destaque, a "nova onda" de filmes inovadores se depara com o problema de acolhimento de público. Esses filmes, nas palavras do crítico Jean-Claude Bernardet, são "irrelevantes" desse ponto de vista. No momento atual, enquanto comédias globais como Até Que a Sorte nos Separe 2 fazem quatro milhões de espectadores, os três filmes do Filmes do Caixote não chegam a 100 mil. A questão da "relevância" ou "irrelevância" foi tratada também por Kleber Mendonça, numa diatribe com o diretor da Globo Filmes, Cadu Rodrigues, em seguida à recepção crítica de O Som ao Redor. Para Kleber, qualquer um que "lançar um filme no esquema da Globo Filmes faria 200 mil espectadores no primeiro final de semana".
A questão que está em pauta é velha na história da arte e diz respeito à autonomia de criação. O adjetivo "irrelevante" nas palavras de Bernardet assume conotação negativa, mas me parece que essa negatividade encerra mal entendido: para Bernardet o cinema brasileiro "relevante" é aquele que atinge o público, o grande público.
Bernardet cita Tropa de Elite, como exemplo de filme "relevante"; mas o caminho que José Padilha deu à sua carreira responde sobre o sentido da "relevância", sobre o cinema com que se afina... Se esse é o ponto, o que se tem em vista é o mercado e seus humores. Neste sentido, "relevância" ou "irrelevância" não passa de jogo de palavras para a submissão às regras do mercado.
Assim, caso Caetano Gotardo se submetesse às condições de "relevância", jamais teria feito O Que Se Move. Não teríamos, pois, um filme que se oferece como objeto de culto, e não mais um produto para alguns minutos de entretenimento. "Irrelevante" do ponto de vista do grande público que vê o cinema como diversão, O Que se Move toca a sensibilidade de quem quer que veja um filme como obra de arte. Que seja bem vindo O Som ao Redor, O Que se Move e o propósito de filmografia recente no país que se pauta pelo desafio, pelo risco e pela ousadia formal.
É evidente que a importância desses filmes - e desse momento em nosso cinema - está para ser contada. Mas me parece fora de questão que neles respira-se uma nova atmosfera, diferente e inovadora. A determinação dessa nova geração, que se coloca à margem da Globo Filmes e das pressões de mercado, não deve escapar àqueles que sejam sensíveis à uma maneira de entender que o cinema pode se orientar pelo primado da autonomia da criação artística.
Humberto Pereira da Silva
São Paulo,
26/2/2014
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