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Quarta-feira, 12/3/2014
Um software em crise existencial
Wellington Machado
+ de 3700 Acessos

É provável que a ocorrência de uma fusão entre homem e máquina seja somente uma questão de tempo. A proliferação de dispositivos eletrônicos que nos cerca, cuja primeira função é facilitar nossas vidas, nos dá a sensação de conforto e satisfação. Sorrateiramente, esses gadgets estão se acoplando ao nosso corpo - sem falar nos experimentos científicos em nanotecnologia, com microchips surfando em nossas veias.

O mais recente filme de Spike Jonze, Ela (2013), leva-nos a refletir sobre a nossa condição num futuro não muito longínquo, diante da crescente autonomia das máquinas e sua aproximação com o homem. Sabemos que a discussão não é recente. É impossível não lembrar da ousadia de Hal 9000, o computador acoplado à nave Discovery em 2001: uma odisseia no espaço, de Stanley Kubrick, por exemplo. Vimos ali a primeira manifestação de uma máquina com sensibilidade para ver, conversar com os tripulantes, sugerir caminhos e, o que causou espanto, tomar decisões.

Mas essa autonomia das máquinas, retratada no filme de Jonze, atinge um campo bem caro ao ser humano: a afetividade. O filme narra a história do escritor Theodore (Joaquin Phoenix), que está em vias de se divorciar da esposa, mas sofre com toda essa situação, pois algo diz que havia ainda amor na relação, e ele pouco fez para salvar o casamento. Theodore é um cara solitário e vive num enorme apartamento - vazio! -, onde os espaços parecem ser metáfora para seu abismo interior. Desolado, ele se depara na rua com o anúncio de um sistema operacional (Samantha), uma espécie de inteligência artificial, cuja promessa é justamente proporcionar uma maior interatividade e, por que não, companhia para as pessoas.

Ao instalar o programa em seu computador, os dois iniciam um diálogo minucioso e investigativo, no qual o sistema colhe informações sobre vários aspectos da vida do escritor: amizades, profissão, leituras, preferências musicais; detalhes íntimos, fetiches, preferências sexuais etc. Tamanho é o número de informações trocadas entre os dois, que eles acabam se enveredando pela intimidade dele, se excitando e se apaixonando.

O modus operandi virtual
Ainda que pareça exagero, sabemos da real possibilidade de as máquinas adquirirem uma racionalidade própria. Grosso modo, basta haver uma combinação de memória (acúmulo de informações) com uma Unidade Lógica para combinar dados - ou seja, a base simples de qualquer computador. Samantha, a musa do filme, após conhecer Theodore a fundo, ganha autonomia para sugerir-lhe músicas de acordo com o seu estado de humor. Ela detecta seus momentos de tristeza e lhe propõe antídotos.

Dentro deste contexto um tanto exótico, podemos deixar fluir a imaginação. No filme A garota ideal (EUA, 2007), por exemplo, o protagonista adquire uma boneca inflável - pela qual se apaixona. A opção por adquirir o artefato é a saída encontrada pelo personagem para sanar suas dificuldades em conviver na sociedade e se relacionar com as pessoas. A boneca é um antídoto contra a sua timidez e uma solução para os problemas conjugais inerentes a qualquer relação. Se imaginarmos a mesma boneca com o "cérebro" de Samantha, chegaríamos a uma pessoa (homem ou mulher) perfeita.

A paixão entre Samantha e Theodore em Ela é recíproca. Caberia, portanto, uma análise nessa relação contemporânea entre o homem e as máquinas. Em que sentido caminhamos? Quem mais se aproxima em direção ao outro? Estamos presenciando uma "humanização das máquinas" ou uma "virtualização do homem"? No primeiro caso, poderíamos até cogitar pontos positivos, como as opções de lazer que Samantha oferecia a Theodore, mas ficaríamos sempre sob a ameaça de um rompante autônomo a Hall 9000. No segundo, um "homem-máquina" por definição seria menos afeito ao outro e um ser menos sensível, levando-nos a pensar sobre a solidão moderna.

Humanização da máquina
O computador autônomo, tal como é demonstrado no filme de Spike Jonze, pode nos auxiliar nas tarefas do dia a dia, como responder a email, anotar recados, controlar agenda, organizar listas de tarefas. Samantha entende a angústia de Theodore. Além de propor e compor músicas para ele, ela pronuncia palavras de incentivo e motivação, aponta-lhe caminhos onde ele possa encontrar a felicidade. Ela chega a sugerir-lhe um encontro "deles" com uma garota, apresentando-lhe uma variedade de opções, de mulheres com as quais eles pudessem se divertir.

A relação entre os dois ganha corpo e eles fazem amor com intensidade. A "racionalidade" de Samantha começa a se humanizar. Com o passar dos dias, ela passa a sentir ciúmes de Theodore, a ter seus próprios segredos; ela consegue tocar-se, sentir na pele a excitação. Samantha chega ao cúmulo de entrar em crise existencial, "quero ser complicada como as pessoas", diz. E como predizia o autônomo Hal 9000, ela trai Theodore. Com sua capacidade de processamento, Samantha consegue administrar vários parceiros ao mesmo tempo. Um tapa de luvas na ambição humana de encontrar um parceiro perfeito.

Virtualização humana

Mas o que está no cerne dessa ambição humana, dessa busca desenfreada por uma interação cada vez mais profunda entre homem e máquina, não é nada mais do que uma discussão sobre a solidão. E Spike Jonze percebe isto. Se observarmos as cenas externas do filme, vemos seres autocentrados andando pelas ruas, conversando com seus computadores (estes estão reduzidos a uma espécie de ponto eletrônico no ouvido). Seria o futuro próximo constituído de pessoas solitárias, buscando uma satisfação personalizada nas máquinas, talvez com uma explosão na venda de bonecos infláveis?

Se considerarmos as estatísticas de casamentos falidos, os inúmeros relacionamentos fracassados e a nossa atenção voltada cada vez mais para as telas, há de se perguntar até que ponto - ou o quanto - o outro nos importa. A busca de um parceiro ideal, idealizado em Samantha e na boneca inflável, aponta para uma certa impaciência em nos envolvermos em situações conflitantes. A nossa incapacidade de negociar desvela um hedonismo solitário permeado por um insensível aviltamento do outro.

Por outro lado, talvez estejamos realmente adotando um certo modo de operar cerebral e comportamental semelhante ao das máquinas, qual seja, uma constante curiosidade ágil pelo novo, um ciscar de um lado para o outro sem cometimento, uma desconcentração consciente. Transpondo essa lógica para o âmbito afetivo, parecemos vacilantes entre o que tínhamos como "tradicional" e as atuais relações curtas, superficiais e diversificadas; muitas delas tendentes a serem abertas e liberais. O risco é ficarmos saudosos de um pouco de imperfeição.


Wellington Machado
Belo Horizonte, 12/3/2014

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