COLUNAS
Quinta-feira,
27/3/2014
A feira ao longe
Elisa Andrade Buzzo
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ilustra: Renato Lima
"Mulher mostra dinheiro pago pela prefeitura para quem faz a varrição na cracolândia." Foto de Danilo Verpa veiculada nas capas dos jornais Agora e Folha de S.Paulo no dia do aniversário de São Paulo, 25 de janeiro.
Recortes de uma realidade que não para de acontecer. Retalhos coloridos, de roupas, de céu e braços erguidos, de chão repisado em compasso de mesmice, do cotidiano do vício. Em primeiro plano uma mulher eleva um braço ao ar com duas notas de cinquenta reais, a outra mão segura uma caixinha de som. O sorriso é aberto e contagiante, seu rosto se precipita para cima como que se se elevasse aos céus, em agradecimento. Ao fundo, uma estátua religiosa e branca, provavelmente D. Bosco com duas crianças.
Quem nunca ouviu falar da Cracolância ou passou por suas imediações? Muito noticiada em janeiro deste ano foi o programa Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo, uma incursão da Polícia Civil mal explicada, a favelinha já demolida pela prefeitura. Matérias sobre uma senhora ou um médico fantasiado que lá vão fazer alguma coisa que ninguém afinal consegue realizar: devolver dignidade àquelas pessoas e um bairro para a cidade.
Sim, um palco, os Campos Elíseos, de outrora bairro elegante, das mansões dos fazendeiros de café, da sede do governo do Estado, a uma área degradada, especialmente a Alameda Dino Bueno, a área de "passagem" dos dependentes químicos. Se no final do século XIX a região era extremamente nobre por estar muito próxima ao centro, da rodoviária, da Estação da Luz, do hospital que a cidade tinha e mesmo de um grande colégio, o Liceu Coração de Jesus, hoje tudo isso não quer dizer mais nada.
Não deixa de ser triste, irônica e demasiadamente real a história desta cidade, feita de ocupações e destruições, de dias de riqueza e glória no formato de grandes casarões ajardinados, de esvaziamento e decadência quando não demolidos muitos deles transformados em cortiços. Como uma porção de terra da época colonial os bairros são explorados, valorizados e depois deixados às moscas, desprestigiados e imersos na pobreza, na desilusão social e de vida de tantas pessoas, e em desuso, fora de moda...
Pois bem, estou na Alameda Dino Bueno esquina com a Alameda Nothmann (que bela é a palavra "alameda", tão benquista). Pouco à frente da esquina, a entrada do Liceu Coração de Jesus, fundado por D. Bosco em 1885, num entardecer de domingo está deserta, muito embora seja sabido que o colégio perdeu muitos alunos em decorrência da degradação da área. Depois de vinte anos estou de volta para uma visita ao Liceu onde tive minha formação escolar básica. Ao longe, a feira. Ao final do amplo quarteirão que o colégio contempla, uma confusão de cores, retalhos. Estou longe não consigo ver nada nitidamente, apenas resquícios de pessoas, trajes coloridos, um ar de feira. É a feira da droga em ebulição.
O porteiro autoriza minha entrada no colégio. No grande pátio arborizado e com quadras poliesportivas, não escutamos nada do exterior. O silêncio é total, a paz de uma escola vazia, sem alunos. Suas grandes e grossas paredes que margeiam todo o quarteirão delimitam um paraíso estudantil em pleno inferno. Lá dentro, o tempo está como que parado, ensimesmado num céu limpo e azul. A vida é imóvel e como que constante. Estou lá agora, mas também lá estive um dia, por todos os dias, saindo por aquele portão e indo para casa a pé, sozinha, uma criança. Mas não há como ignorar o preâmbulo deste oásis imaculado pelo tempo.
De onde estou, a feira não me vê, mas eu vejo a feira, ainda que distante, mas numa absurda proximidade. Também era da feira, também errava alegremente por aquelas alamedas que já estavam em decadência, que estavam em vias de concretização de seu ciclo hostil, deixando totalmente para o passado o ciclo de glórias aparentemente infindas do café. Como um discreto fantasma, abandono a feira. E se há um lugar na cidade para aquela mulher lançar os braços ao céu, seja com qual intuito for, que seja naqueles campos divinos, em frente ao sagrado coração.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
27/3/2014
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