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Terça-feira,
1/4/2014
Beijinho no ombro
Marcelo Centauro
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Nunca acompanhei a carreira da Valesca Popozuda, mas devo confessar que ela me é uma figura simpática. Não por sua atividade artística, que mal conheço, menos ainda por sua bunda, que dispensa comentários, mas por uma imagem - talvez falsa - de mulher liberada. Infelizmente, mulher falando abertamente de sexo é tabu, continua sendo, e por isso ela acaba por desempenhar uma função necessária. Além disso, quando vez ou outra defende posições favoráveis ao casamento gay, acentua sua veia liberal quanto aos costumes, o que é importante, sobretudo com o crescimento do fanatismo religioso no Brasil. Por outro lado, entretanto, sinto-me capaz de apontar elementos na sua imagem que não me agradam muito, mas isso seria irrelevante frente ao que sua nova canção me despertou.
Cá entre nós, li algumas vezes a letra de "Beijinho no ombro", vi o vídeo na internet, e não consegui concatenar perfeitamente todos os versos. É certo que me falta o conhecimento contextual (por exemplo, de sua história como artista, do funk) para uma compreensão adequada, pois não posso supor que um clipe que, quando o procurei, havia sido visto por 8.989.335 pessoas possa ser tão enigmático como me pareceu. Felizmente, não pretendo fazer uma exegese da canção, não usarei meu tempo para tanto. Escrevo, porém, porque alguns versos me levaram a visualizar com clareza algo que há muito me incomoda e, dado que só sei pensar escrevendo, tive de vir ao papel.
Basicamente, o que me salta aos olhos na música é a oposição entre o sucesso e a inveja, ou melhor, é o fato de o eu lírico (posso usar esse termo?) se colocar na posição do êxito absoluto, ancorado na fé em Deus, e acreditar que as invejosas (perdedoras, como dizem os norte-americanos?) estão a todo tempo a observar seus passos. É como se, assim me parece, o eu lírico estivesse no centro do mundo, concentrasse todas as atenções e, mais do que isso, almejasse essa notoriedade, já que admite o desejo de que todas as inimigas tenham vida longa "pra que elas vejam cada dia mais nossa vitória" (em meio à egolatria da letra, esse "nossa" é curioso. Nós quem? Ela e Deus?).
Acho muito interessante esse desejo de notoriedade, em especial quando acompanhado da crença de que as outras pessoas nos invejam. Pergunto: o que nossas vidas têm de invejável? Considero a minha tão comum, tão besta, tão arroz com feijão que não consigo conceber que ninguém queira estar em meu lugar, exceto talvez quem passe fome ou esteja desempregado. Pelas conquistas que julgo ter tido, umas poucas, duas ou três, se tanto, não nutro louvor e sinceramente acredito que são equivalentes às realizações de alguns amigos, as quais acompanhei com alegria. Não me coloco acima, também não me coloco abaixo. No fundo, acho nossas vidas muito semelhantes, vejo a miséria humana repartida em todas elas.
Ademais, ser invejado deve ser terrível, suponho eu, e não vejo mérito algum nisso. Se a franqueza me é permitida, acho extremamente tacanho alguém dizer que os outros lhe têm inveja. Isso implica se colocar acima, se julgar importante - e quem de fato o é? Todo esse papo de inveja, no entanto, revela o quanto, para muitos de nós, a vida anônima, simples, soa sem graça. Parece que é problema ser comum. Não é à toa que no clipe a Valesca Popozuda seja uma rainha e tenha uma águia no espaldar de seu trono e um tigre a seus pés. Um plebeu passeando com seu cachorro não chamaria atenção alguma. É preciso ser especial, superior, de preferência único! Ser comum é ser ninguém. Dá-lhe presunção! Como antídoto, será que vale lembrar Montaigne? "Por mais alto que seja o trono que ocupemos, sempre estaremos sentados sobre nosso cu."
Nota do Editor:
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Armadura de Vento.
Marcelo Centauro
Itabira,
1/4/2014
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