COLUNAS
Sexta-feira,
16/5/2014
A viagem e a experiência
Marta Barcellos
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Bem antes dos ricos muito ricos descobrirem o valor da "experiência", eu já achava que viagem era melhor do que ter coisas. Naquele tempo, o tempo dos meus primeiros salários, havia inflação pra valer, e por isso comprar coisas - um automóvel usado, uma ou duas linhas telefônicas (sim, linhas de telefone fixo; impossível explicar aqui rapidamente do que se tratava) - não era apenas consumismo: funcionava como uma espécie de poupança. O senso comum dizia que os bens se perpetuavam, porque não eram descartáveis como hoje, e até mesmo pareciam se "valorizar", por causa da hiperinflação. Enquanto isso, experiências não tinham o valor de revenda de um carro, sem falar que se esvaíam na memória, já que ninguém compartilhava relatos e selfies. Uma viagem à Europa, em última análise, "rendia" apenas uma chatíssima seção de slides para os amigos.
Era nesse contexto que os ricos muito ricos ostentavam seus carrões, joias e produtos importados. Viajavam para o exterior, sim, mas chique mesmo era poder exibir no Brasil as grifes estrangeiras, ou pelo menos trazer um tubo de creme dental Crest.
Hoje, os ricos muito ricos continuam ostentando carrões e grifes, mas algo vem mudando no mercado de luxo. Talvez porque as "coisas" se tornaram produtos descartáveis, commodities, depois que os chineses aprenderam a reproduzi-las num piscar de olhos. Talvez porque os ricos muito ricos estão... cada vez mais ricos. Não sabem o que fazer com o dinheiro. Tampouco precisam se preocupar com o valor de revenda de seus bens, já que a tendência é jamais ficarem um tiquinho mais pobres.
O economista francês Thomas Piketty tem explicado por aí que os ricos do topo da pirâmide estão cada vez mais ricos porque que seu capital é suficiente para garantir um distanciamento progressivo e sustentável do restante da população. Por outro lado, tornar-se um deles pela via do trabalho está cada vez mais difícil. Ou seja, estaríamos meio que voltando à situação anterior às duas guerras mundiais, em que só é muito rico quem nasceu assim, ganhou herança ou fez um bom casamento.
Estou simplificando bastante o estudo e as conclusões de Piketty, que transformaram seu livro Capital in the Twenty-First Century em best-seller, só para chegar ao ponto que me interessa: foi assim, quase por acaso, que os ricos começaram a perceber o vazio existencial do consumismo - e descobrir "a experiência".
Diante de um mundo de fartura, velocidade e descartabilidade, a experiência promete aos muito ricos alguma retenção do prazer do consumo ao perpassá-lo pelo corpo. Graças ao apelo sensorial, uma massagem feita com óleos perfumados à luz de velas com determinado fundo musical teria o poder de perpetuar a sensação de prazer além da proporcionada pela grife do spa (ainda assim necessária). Como eram as joias, antes.
O corpo, porém, costuma reagir com mais intensidade ao desconforto do que ao prazer. Retém de tal forma a sensação de medo, de frio, de dor, a ponto deste registro poder se configurar em trauma. E lá se foram os ricos muito ricos tentar comprar também essas experiências-limite: primeiro, em viagens supostamente perigosas ou desconfortáveis (um safári na África, uma estirada de bicicleta ao final da qual encontram as malas no quarto da pousada); e agora em viagens ou passeios que cada vez mais se aproximam da vivência dolorosa dos... mais pobres!
Sem dúvida, passar a noite na favela ou flutuando no espaço sideral, a peso de ouro (expressão do tempo que o ouro era o tal que retinha o valor das coisas), é uma grande ironia dos novos tempos.
Mas isso tudo faz pensar no fato de que, enquanto os muito ricos ficam absurdamente mais ricos e perdidos em relação ao próprio prazer, os remediados saíram da linha da sobrevivência (Piketty diz que mesmo assim a desigualdade vem aumentando) e passaram a ter acesso a uma "diversão e arte" talvez mais descompromissada. Se, no primeiro momento, eles imitam os ricos de antigamente no acúmulo de coisas é porque ainda se preocupam, sim, com a sobrevivência. E é a preocupação real com a sobrevivência que os afasta do patético fascínio dos ricos pelo trauma. Quanto maior a desigualdade na pirâmide, por sinal, mais patético parece ser o rico que visita a favela (situação genialmente retratada pelo Porta dos Fundos).
Voltando à experiência da viagem, agora na faixa da pirâmide da dita classe média (que, depois de Piketty, pode tirar o cavalinho da chuva e se conformar que jamais será muito rica), seu potencial de afetação dos sentidos sempre fascinou aqueles que tiveram condições de se deslocar. Deslocar-se hoje está mais fácil - aí estão os aeroportos lotados para provar - e a experiência-viagem tornou-se produto segmentado, disponível em diferentes formatos.
No entanto, já em seus primórdios, a experiência-viagem se oferecia nas duas "modalidades" reconhecidas até hoje: a do turista, mais banalizada mas ainda assim rica de efeitos, e a do viajante, aquele que vivencia com toda a intensidade aquela realidade diferente da sua. A rigor, o viajante de verdade, aquele que se mescla ao ambiente como quem descobre uma nova vida, não retorna. Deixa de ser viajante.
Eu voltei, embora a experiência de suspensão, ou estranhamento da realidade - como das outras vezes -, ainda esteja entranhada em meu corpo. E sem a necessidade de traumas, ressalte-se aqui.
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
16/5/2014
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