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Terça-feira,
13/5/2014
Entredentes, peça de Gerald Thomas
Jardel Dias Cavalcanti
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É preciso ter os nervos à flor de uma úlcera para saber que nada está tranquilo no reino da Dinamarca (Brasil). É preciso sair de dentro de uma boceta, renascer como astronauta vindo sabe-se lá de onde, ter sotaque português ou falar a língua de Beckett, Wagner e Joyce, para revelar isso aos brasileiros. É preciso estar intranquilo não só com nosso quintal, mas com todo o mapa das guerras e violências mundiais, com seus ódios religiosos, de raça e de gênero, com a insanidade do Capital e as burrices crônico-tecnológicas que assolam as vidas (des)humanas no mundo de hoje.
É preciso denunciar os muros, fazê-los cair, e abandonar a vida como um muro de lamentações. É preciso ter entrado em coma várias vezes, e quantas vezes for necessário, para cuspir sobre a acéfala sombra espúria das nossas massas silenciosas. É preciso perder a paz (mesmo que se coma e se trepe todo dia) ao esperar pela janela de nossa surrealidade aviões descerem com suas bombas de agonia sobre as cidades. Enfim, é preciso criar um teatro de nervos expostos e estômagos revirados, como o de Gerald Thomas, para olhar o monstro da insensatez humana (e, principalmente, a brasileira) na cara e dizer o que ele é.
Entredentes, sua nova peça, surpreende por várias razões. Por ser uma obra de arte completa, como sempre foi o propósito do dramaturgo e diretor, em que música, texto, performance de atores e imagem se configuram como criação em fluxo contínuo. Por não poupar a linguagem das dissonâncias textuais, por rir de si mesmo (exigência mínima do pensamento criativo), e por ser, antes de tudo, pessimista quanto ao destino humano (e, principalmente, o do nosso país).
A peça também é surpreendente na escolha dos atores: Ney Latorraca, Edi Botelho e a atriz portuguesa Maria de Lima. Enlouquecidos, incertos, colapsados, mancos, falastrões, interpretam de forma excepcional a insanidade do mundo e do Brasil, seja através das ações do próprio corpo alquebrado e ulcerado, seja sendo-se possuído por espíritos de porcos que os esquizofrenizam durante momentos da peça.
Momento forte da peça é quando a atriz Maria de Lima pragueja sem pudor sobre os espectadores-brasileiros, exibindo nossa desgraça, nossa insensatez, nossa burrice, nossa incapacidade de ter de fato uma história. Gerald fala através deste "outro" (a atriz) sobre suas próprias angústias diante do presente amorfo do Brasil. Não esconde a autoria da fala ("Esse texto quem escreveu não fui eu, foi o Gerald", diz a atriz no final de seu discurso visceral).
A mensagem de Entredentes (tem uma mensagem aqui?) pesa como a porrada de um Anderson Silva: nossa antropofagia não valeu de nada, sofremos ainda de complexo de vira-lata. Ignorantes, cegamos nosso olho diante da TV. Importamos seriados enlatados como última moda de um primeiro mundo kamikaze. Tudo vem do outro mundo como importação de receitas prontas, pasteurizadas.
Nosso brado forte, à margem de tudo, não deu em nada. Pecamos contra nós mesmos com um otimismo de perdedores (denunciado por Gerald Thomas na fala da atriz Maria de Lima e, em outro contexto, pelo historiador Carlos Fico no seu livro A invenção do otimismo no Brasil). Nossa história não cheira a sangue revolucionário. Não decapitamos nenhum político salafrário até hoje. Nos condenamos à ilusão sanguessuga de viver da vida dos outros, nas sucessivas e entorpecentes novelas que fabricam cidadãos acéfalos diariamente no país.
Valorizamos as desgraças, a estupidez, a burrice e a falta de caráter. Desde que haja bunda, novelas e carnaval... A forca que aparece no final da peça dá a medida de uma sugestão: colapsar-se é preciso! (Zweig suicidou-se em Petrópolis no dia em que a Europa afundava seu humanismo sob o nazismo e o Brasil comemorava tranquilamente seu carnaval).
O apelo dramático da peça é regulado principalmente pela música, pelo texto autofágico dos atores e, mais do que tudo, pelo andar capenga da atriz portuguesa, usando apenas um salto alto, talvez para revelar o quanto é manco todo discurso, sua impossibilidade diante de uma realidade absolutamente grosseira e insana.
Gerald Thomas não faz um teatro local, apesar das alfinetadas no Brasil (a escolha da música "Chão de estrelas", na abertura da peça, é significativa nesse sentido - ao alegorizar o Brasil como o "palhaço das perdidas ilusões"). Seu teatro discute os dramas universais, onde se perpassa os signos da vida humana (sair da boceta e cair nessa terra insana) e a construção dos signos da história (do Muro de Berlim ao Muro das Lamentações). Faz um teatro da linguagem, do jogo livre das associações estapafúrdias, e, discípulo de Freud que sempre parece ser, faz-se também um destruidor de ilusões. Mesmo assim, não se deixa amargurar enquanto autor e diretor teatral: faz rir, de todos e de tudo que diz. Diz com veemência, mas diz o que deve dizer: que o teatro é o lugar da invenção da linguagem fora do discurso corrente.
Suas aporias, como as de Beckett, ressoam o desejo de continuar: "Você precisa seguir adiante, eu não posso seguir, eu vou seguir adiante". Gerald não deixa o teatro, porque não quer deixar também de incomodar os idiotas.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
13/5/2014
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