COLUNAS
Quinta-feira,
26/6/2014
Tons por detrás do rei de amarelo
Eugenia Zerbini
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Walnice Nogueira Galvão, professora emérita de teoria literária da Universidade de São Paulo, afirma que deveria ser assegurado às crianças uma dose de Edgar Allan Poe (1809-1849) logo na infância. Além de Poe, eu recomendaria também algumas doses de Jan Potocki (1761-1815), Gérard de Nérval (1808-1855), e Théophile Gautier (1811-1872). Em síntese, boas páginas de literatura fantástica que, além de nutrir a imaginação dos leitores para o resto da vida, preveniriam encantamentos com brilhos duvidosos. No caso, O Rei de Amarelo, de Robert Chambers (1865-1933), hoje incensado como uma das obras primas da literatura de fantasia (por que o adjetivo fantástico foi abolido?).
Foram publicadas quase simultaneamente (em março e abril respectivamente) duas traduções da obra: O símbolo amarelo (Curitiba, Arte e Letra) e O rei de amarelo (RJ,Intrínseca). Optei pela segunda. Logo me decepcionei, na leitura do primeiro conto, "O reparador de reputações". Sempre fui atraída pela ideia de um livro dentro de outro livro. Um livro ao quadrado, conceito caro aos apaixonados pela leitura, uma colorida matrioshka, com suas surpresas, uma dentro da outra. O que dizer, então, de um livro fazendo referencia a outro, que quando lido leva o leitor à loucura, como no caso em questão?
"Durante minha convalescência, comprei e li pela primeira vez O Rei de Amarelo. Lembro, depois de terminar o primeiro ato, que me ocorreu que era melhor parar por ali, Arremessei o volume a lareira, mas o livro bateu na grade protetora e caiu aberto no chão, iluminado pelas chamas. Se não tivesse visto de passagem as primeiras linhas do segundo ato, eu nunca teria terminado a leitura, mas, quando me levantei para pegá-lo, meus olhos grudaram na página aberta, e com um grito de horror, ou talvez tenha sido de alegria, tão pungente que o senti em cada nervo, afastei o objeto das brasas e voltei em silêncio e tremendo para meu quarto, onde o li e o reli, e chorei, e ri e estremeci com um terror que às vezes me assola. É isso que me incomoda, pois não consigo esquecer de Carcosa, onde as estrelas negras pendem dos céus; onde as sombras dos pensamentos dos homens se alongam ao entardecer, quando os sóis gêmeos mergulham no lago de Hali; e minha mente guardará para sempre a lembrança da Máscara Pálida".
Notável o recurso do autor da narrativa em localizá-la no ano de 1920, um quarto de século além da data de publicação do volume, 1895. Desagradável, porém, sentir que tudo soa como um eco de coisas já escritas - e muito bem escritas - anteriormente. Ambrose Bierce (1842- Circa 1914) é uma referência expressa nesse universo, por meio das citações a Carcosa - cidade imaginária - e a Hali, possivelmente um de seus habitantes. Por detrás da Máscara Pálida está a outra, mais colorida, a da Morte Rubra, do conto de Edgar Allan Poe. Que, por sinal, faz-se onipresente não apenas no tom empregado na narrativa, mas também nos detalhes. Por exemplo, a ação do personagem central, o Sr. Castaigne, inicia-se na Washington Square. Como se sabe, a praça coincide com a área de um dos antigos cemitérios da cidade, ativo até 1825. Não bastassem os 20 mil corpos que ali jazem, Washington Square está a uma quadra de uma das ex-residências de Poe (85 West 3rd Street, cuja fachada foi preservada, integrada no edifício da Faculdade de Direito da New York Universty). Mr. Castaigne, pois bem, conhece o Sr. Wilde (outro tijolo alheio no pastiche alinhavado por Chambers), que o coloca em contato com a história de uma dinastia imperial americana, cujos galhos da árvore genealógica alcançam Castaigne.
Tzvetan Todorov (1939 -), no clássico Introdução à literatura fantástica, afirma que o sujeito das narrativas do gênero quase sempre é alguém de cultura e com conhecimentos específicos (como médico, cientista, ou então arqueólogo, estudioso de simbologia ou de culturas antigas), espécie de plataforma para a ampliação dos elementos e da voz de autoridade que conferem credibilidade à história. Robert Chambers (1865-1933) teve a vida semelhante a um desses narradores. Nasceu no Brooklin (NY), de família de meios e tradição. Frequentou bons colégios, dedicando-se ao desenho e às belas artes. Em 1886, partiu para França, prosseguindo seus estudos de ilustração e pintura. Retorna aos Estados Unidos, em 1893, após casar-se com uma franco-americana, filha de diplomata. Abraça a carreira de ilustrador em prestigiadas publicações. Em 1895, publica o livro que irá deixar seu nome inscrito nas crônicas da literatura fantástica, O rei de amarelo. Não foi seu livro de estreia, uma vez que, em 1894, publicou In the quarter, escrito em Munique: uma história de amor, nos moldes da ópera La bohème, de Puccini (1858-1924), ou do filme Moulin Rouge.
Robert Chambers foi autor de uma centena de obras, incluindo livros infantis e o que se chama hoje de chick lit. Estes últimos renderam-lhe a alcunha de shopgirls Sheherazade e Balzac de boudoir. H.P. Lovercraft (1890-1937), em sua obra subtraiu alguns elementos de O rei de amarelo (o principal deles a quimérica Carcosa), o que não impediu de referir-se a Chambers, em Horror Sobrenatural na literatura como um daqueles titãs decaídos que, embora dotado de boa cabeça e formação, perderam o hábito de usá-las. Lovecraft, na realidade, apropriou-se não de idéias de Chambers, mas de Ambrose Bierce. Este último - jornalista e escritor norte-americano, desaparecido quando se juntava à Revolução Mexicana - sim, o verdadeiro criador de Carcosa.
Morando na França, Chambers teve acesso à vasta literatura fantástica cultivada naquele país, ao longo do século XIX, cuja origens remontam ao Manuscrito encontrado em Saragoça, do autor polonês Jean Potocki. Considerado o Mil e uma noites do ocidente, a obra foi escrita em francês, no século XVIII, e publicado na França nas primeiras décadas do século seguinte. Trata de uma série de histórias interligadas que mesclam duas misteriosas irmãs, casadas com um mesmo homem, grupos de ciganos, magia, cabala, um eremita com seu criado possuído pelo demônio. E, convenhamos, a sonoridade de Carcosa está mais perto do som da espanhola Saragoça do que de Carcassone, cidade ao sul da França a qual se atribui a inspiração de Bierce em sua criação. Além de Potocki, lia-se muito em Paris, na segunda metade do século XIX, os contos fantásticos Theophille Gautier, a quem Charles Baudelaire (1821-1867) dedicou suas Flores do Mal. As mulheres sobrenaturais dos contos de Chambers seguem o mesmo molde das personagens de Gautier, vide seus contos: Angéla, Jacintha, a própria morte apaixonada...
Outro poeta e escritor contemporâneo de Gautier, Gerard de Nérval - incluído pelo crítico Harold Bloom (1930 -) em sua lista objeto do Canone Ocidental - ,com seus contos reunidos em Les filles du feu dá vida a esses tipos femininos intrigantes. O curioso é que até no nome parece que Chambers copia seu inspirador: Sylvie, nome que aparece em várias histórias deste último também é o nome escolhido por Nérval, na construção do seu eterno feminino infernal.
Por fim, atendo-se à tradução,causa estranhamento a remissão às "colunas iônicas", já notada no conto de abertura. A edição aparentemente bem cuidada, deveria acertadamente descrever as colunas como jônicas. De modo instantâneo, assim em um estalar de dedos, O rei de amarelo voltou à moda por meio da série True Dectetive, como anunciado até na quarta capa da edição da editora Intrínseca. Comenta-se inclusive que o visual da série é derivado da obra de Chambers, como denotado na cena do primeiro crime, objeto de investigação durante a primeira temporada do seriado. Outra afirmação leviana. A mulher lívida, de farta cabeleira ruiva, amarrada nua em um tronco, com uma coroa feita de galhos corresponde tem mais a ver com o visual do pintores pré-rafaelitas do que com qualquer outra medida.
Eugenia Zerbini
São Paulo,
26/6/2014
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