COLUNAS
Terça-feira,
1/7/2014
Caí na besteira de ler Nietzsche
Marol Azevedo
+ de 43500 Acessos
Caí na besteira de ler Nietzsche. Para piorar, fiz isso mais de uma vez.
E não foi nenhum arroubo de intelectualice. Levei o negócio a sério: caneta na mão, grifa-texto, régua para acompanhar a leitura, ler em voz alta para ver se algo entrava na cabeça - ou melhor, se algo entendível entrava na cabeça. Fiz até anotações no rodapé das páginas. Rabisquei TU-DO!
Confesso que cheguei aos opostos: fiquei satisfeita e frustrada comigo mesma. Satisfeita porque consegui ler um livro inteiro. Todinho. Ah! De que livro eu estou falando? O livro em questão é Para a Genealogia da Moral e essa foi uma indicação do Álvaro. Achei-me super inteligente, não pelo fato de ter lido um livro que meu ex-orientador leu e indicou, mas porque terminei a leitura, mesmo não admitindo que a edição que li não tinha mais de cem páginas e pelo menos umas trinta falavam sobre biografia do autor, outros livros que o autor escreveu, coisas que o tradutor achou sobre o livro, coisas que o Fulano-de-Tal achou que falou sobre o livro etc.
Mas como nada é 100% eu também fiquei frustrada comigo porque ainda não terminei de ler o outro livro. O motivo? Tenho medo do Zaratustra.
A forma como esse outro livro chegou até mim foi mais... singular. Estava no metrô e vi uma série de máquinas de vender coisinhas: chocolate, refrigerante, livro, salgadinho, cerveja... Fui até a máquina do livro e vi os títulos: Como ser mais feliz, mesmo sendo você quem é, Como perder 10 Kg em 2 horas, Assim falava Zaratustra, O Primo Basílio, Receitas de liquidificador. Coloquei uma nota de R$5 na máquina de livro e escolhi o Zaratustra. Me ferrei. Se eu tivesse escolhido Receitas de liquidificador não sentiria tanto medo.
Mas o caso é que eu peguei o Zaratustra e nunca pensei que pudesse ter tanto medo de um livro. Acho que ainda não cheguei à página 60. Também nunca pensei que pudesse levar a sério a expressão "doses homeopáticas". Para mim tudo sempre foi muito alopático. Tento ler esse cara em doses homeopáticas, não em doses cavalares, como qualquer pessoa ávida por pseudoconhecimento faria. Tentei fazer isso uma vez, mas não consegui chegar ao final da quinta página seguida. Impossível. Se alguém diz que lê mais de seis páginas de Zaratustra, por dia e diz que entendeu está mentindo. Ninguém consegue.
Correção. Acho que meu raciocínio não foi completo: ninguém normal, pois para conseguir tal façanha tem que ser anormal mesmo.
Das vezes que me aproximei daquele livro (não o indicado, o da maquininha) tive meu cérebro entortado só de tocar na capa. Verdade! Minha cabeça se entortava um pouco para a direita, um pouco para baixo, e lá ia eu fechar o livro para ver se o cérebro desentortava de novo. Em vão: cabeça torta, olhar torto, pensamento torto.
Mas tudo bem! O mais importante disso tudo é que li um livro do Nietzsche! Eu consegui! E o melhor: eu li e entendi! Parabéns para mim; ganhei mais uma estrela dourada no caderno. Agora é só dar um pé na bunda da ovelha, não dever mais nada para mim e parar de pensar que quem ri por último ri melhor. Se você não entendeu o que eu disse, leia o livro. Livros foram feitos para serem lidos. Lidos e interpretados, e interpretação isenta é algo que não posso dar, ainda mais em casos de livros como esses.
E não se importe com o nó no cérebro que eles irão lhe causar. Se quiser moleza, vá ler Paulo Coelho.
Dizem que Nietzsche é o filósofo que grita a vida. Mas não aquela vida em que todos usam branco e ficam correndo como uns desvairados, sorridentes, por campos verdejantes, um sol que nunca para de brilhar e peles que nunca precisarão de um protetor solar. Não. Isso é a vida vendida em comerciais de pasta de dente, empreendimento imobiliário e laxante. A vida que esse cara "vendeu" para mim é bem menos cenográfica, mais crua e simplesmente complicada (ou complicadamente simples... esqueça! Já não falo mais coisa com coisa).
Pois bem: dizem que Nietzsche é o filósofo que grita a vida - e o termo é esse: grita - e que vida é usufruir o direito à possibilidade. É dar um passo para além da cortina, para além do "não" sem réplica, do medo do (fazer) diferente, do "por que" sem resposta. Difícil, não? Bota difícil nisso... E na prática, ainda estou quebrando a cabeça para ver como que eu faço para dar um pé na bunda da ovelha...
Sempre me disseram que, para Nietzsche, viver "feliz" é viver na íntegra, viver "de verdade", mesmo quando há o infortúnio, a tristeza e o acaso. É saber que essas coisas existem e nem por isso achar que tudo está perdido. Resolvi ler seus livros, só para conferir. Li pensando em buscar a felicidade do sorriso das pasta de dente e acabei ficando triste! Triste por começar a pensar em mim como alguém aprisionado, como alguém domesticado, como um produto acabado, com forma definida. Triste por não ter um sorriso de pasta de dente... mas estranhamente feliz por ter me deparado com isso (mas não o suficiente para sair do meu atual estado depressivo).
Mas falando sério (como se antes eu já não o estivesse fazendo), li Nietzsche e aprendi a escrever corretamente o nome dele sem precisar de uma cola. Já é um avanço. Li Nietzsche e vi que o cara dá nó no meu cérebro. Dá nó no meu cérebro porque ele diz para eu fazer o contrário de tudo o que falaram para eu fazer até hoje. Li Nietzsche e notei que os conceitos de Liberdade (com letra maiúscula mesmo), Felicidade, Sabedoria e Força não são bem aqueles que sempre ensinaram para mim. Força não é se impor aos outros; Felicidade não é rir à toa num eterno Prozac, Sabedoria não é imitar o Buda na posição de lótus - nada contra o Buda, não ponha palavras na minha boca - Liberdade não é ficar correndo sem parar, sem rumo. Não sei o que é. Só sei que NÃO é isso.
Lembro a primeira vez que ouvi esse nome. Foi durante a faculdade e saiu da boca de um povaréu que fazia cara de inteligente. Fiquei morrendo de inveja daquelas caras. Depois de cinco anos de convivência continuei vendo as mesmas caras de inteligente, mas aí eu já sabia que só eram as caras mesmo. Pelo menos para mim era só isso. É difícil acreditar em alguém que não demonstre ter substância. Acho que esse foi um dos motivos de eu não querer chegar perto de qualquer escrito dele durante alguns anos.
Mas, depois de tanto tempo, resolvi mudar de ideia.
Li Nietzsche e fui me olhar no espelho. Vi a cara de sempre com um item a mais: um ponto de interrogação. Não consegui fazer aquela cara de inteligente do povaréu que conheci na faculdade. Pelo contrário: fiz uma cara de "não-sei-se-entendi-direito"... No final das contas, acho que foi até melhor assim: para que querer para mim um rosto que não me representa, uma expressão que não me satisfaz?
Sempre tive muito cuidado, não com o que eu lia, mas com aquilo que eu entendia. Sempre me preocupei se eu havia entendido o texto direito. Ler Nietzsche me deixou com a dupla sensação de que cumpri e fracassei no meu intento. Por exemplo: entendi que há muito mais no mundo do que os espelhos que colocam na minha frente. Mas e a (falta de) coragem para desviar o olhar deles? Alguém explica???
Ler Nietzsche me ajudou a enxergar a minha impotência perante as coisas que estão ao meu redor ao agir do jeito de sempre. Deixou-me de tal maneira que não tive outra escolha senão começar a escrever. Escrever foi o modo que eu arranjei para começar a pagar a dívida que tenho comigo mesma. Dívida perpétua; herança das minhas escolhas e de meu aprendizado.
Ao ler Nietzsche tive a impressão de ter recebido uma tarefa. Uma tarefa única. E uma tarefa estipulada por mim, estimulada por ele e por todo o meu mundo. Sempre fui ótima aluna - aprendi a balir com perfeição - porém agora é chegada a hora de ser professora de mim mesma. Para tanto, é mister que eu experimente o mundo para depois ensiná-lo a mim, que eu observe o mundo para depois descrevê-lo a mim. Ser MINHA aluna e MINHA tutora. Procurar ser sábia sem saber ao certo o que isso significa e se estou tendo êxito. Rir e gozar e falar e tocar e brigar e cansar e escrever e olhar e aquietar e acordar. E achar incrível como frases tão bonitas podem despertar sentimentos tão pavorosos.
Caí na besteira de ler Nietzsche. Para piorar, vou fazer isso mais algumas vezes. Com ele, abri minha cabeça e expus meu cérebro aos seus próprios ventos para que pudesse navegar mais à vontade. Olhei-me no espelho e vi o que está ao meu redor.
Sinto ainda o medo batendo em meu peito como uma lufada de mar em câmera lenta, mas nada que minhas mãos não possam suportar com o treino diário.
Li Nietzsche, fechei os olhos e respirei muito devagar. Isso não acontece todos os dias.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pela autora. Originalmente publicado no blog Meu Caro, Minha Cara.
Marol Azevedo
Ribeirão Preto,
1/7/2014
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Daumier, um caricaturista contra o poder de Jardel Dias Cavalcanti
02.
Hiperbóreo nos trópicos: a poesia de Oleg Almeida de Jardel Dias Cavalcanti
03.
Ao vivo do Roda Viva, pelo Twitter de Verônica Mambrini
04.
Uma defesa de Juno de Giovana Breitschaft
05.
Blogues: uma (não tão) breve história (I) de Ram Rajagopal
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|