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Segunda-feira,
28/7/2014
'Um Conto Chinês' e o absurdo da vida
Carina Destempero
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Aos sete anos você cai de bicicleta, e com a queda vem um corte na carne da sua coxa. Anos se passam, a ferida cicatriza, mas a marca nunca desaparece por completo. Ela fica na parte de trás da perna, um lugar que você não tem costume de olhar; apesar de muitas vezes vê-la de relance no espelho, nem sempre a enxerga. Na maior parte do tempo você nem lembra que a cicatriz existe. Até um dia que, sabe-se lá por que razão, você, ao desistir de sair com um short curto para evitar que outros vissem a marca, percebe que essa cena é recorrente. Quantas centenas de vezes ao longo da vida essa escolha se repetiu? Nesse momento você se toca que aquela simples cicatriz influencia sua vida sem que você perceba, e muito mais do que você poderia imaginar. Além disso, você pensa que pode até escondê-la às vezes, mas que não será possível apagá-la jamais.
Não é só o nosso corpo que é marcado assim. Se nosso inconsciente tivesse um lugar físico estaria cheio dessas cicatrizes. Não sendo físicas, as marcas que ficam são outras, talvez até mais permanentes. Somos muito menos originais do que gostamos de imaginar, não variamos muito em nossas escolhas e atitudes, e no fim das contas somos determinados por meia dúzia de cortes que às vezes parecem mais barras de uma prisão.
Pensei nisso depois de assistir o filme Um Conto Chinês. O protagonista, Roberto, tem cicatrizes daquelas bem feias: sua mãe morreu quando ele nasceu. Ele esteve na guerra, matou, viu amigos morrerem e, ao voltar, encontrou o pai também morto. Acontecimentos tão marcantes que, mais do que cortar, quebraram as pernas de Roberto, e parece que o gesso que serve para sustentá-lo ao mesmo tempo impede seu deslocamento. Ele cria uma rotina milimetricamente planejada, cheia de números e cálculos, contas com as quais pretende eliminar qualquer risco de vida. Só que por mais que se tente evitá-la, a vida continua acontecendo, e o Real vez ou outra se impõe trazendo um novo número para equação. No caso de Roberto, a incógnita surgiu na forma de um chinês sem um tostão no bolso e sem uma palavra de espanhol. Alguma coisa faz Roberto acolher aquele jovem, e as consequências de dar um passo para o lado é que o caminho inteiro se modifica.
Roberto coleciona notícias absurdas de jornal. Logo ele, tão preocupado com o sentido de tudo, mostra ali uma atração exatamente pelo sem sentido da vida. Tudo começou com uma foto sua na guerra, e mais uma vez vemos como ele está preso ao mesmo ponto, como se aqueles fatos não apenas o definissem, mas justificassem que ele não viva nada depois daquilo. Colecionar a vida dos outros é não viver a sua. Roberto diz: A vida é um absurdo, e a resposta indireta que a vida lhe dá através de Jun, inesperado personagem de uma das histórias guardadas por Roberto, é: Sim, a vida é um absurdo sem sentido, mas é só o que você tem. E se foi angustiante assistir Roberto imobilizado, apagando as luzes todas as noites exatamente às 23h como fez no dia em que voltou da guerra, é emocionante vê-lo tirar o gesso e seguir em direção ao maior absurdo de todos: o amor.
Se depois desse momento, desse ato, ele irá se livrar de vez do gesso não podemos dizer. Provavelmente não. E, mesmo que se livre, as cicatrizes continuarão lá. E tudo bem. Não é necessário, nem possível, tirar pedaços de quem somos e transformarmo-nos em outra pessoa. O que Roberto naquele momento fez, e o que podemos almejar, é apenas aceitar perder. Perder certezas, garantias ilusórias, perder números e contas. E então receber vida. E viver.
Carina Destempero
Rio de Janeiro,
28/7/2014
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