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Quarta-feira,
6/8/2014
Gullar X Nunos Ramos: o dilema da arte
Wellington Machado
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É conhecida a resistência do poeta Ferreira Gullar a algumas obras de arte contemporâneas. Além de poeta, Gullar é sabidamente um importante crítico de arte, exercendo este ofício desde a década de 1950. É comum lermos em suas crônicas a crítica aos rumos que a arte está tomando. São recorrentes seus apelos contra a falta de habilidade do artista, à completa ausência de sentido nas obras e ao mau gosto.
Gullar reverbera: "Não adianta me chamar pra ver um paletó, um casal nu ou um monte de cocô; eu não vou; isso não é arte!". É comum também, na exemplificação dessas críticas, as menções à famosa obra Bandeira branca, de Nuno Ramos, na qual o artista expôs urubus no pavilhão da Bienal de 2010, em São Paulo. Em princípio, parece haver uma aversão de Gullar em relação ao que Nuno produz. Mas, ao que parece, a crítica está mais na obra em si do que na figura ou na atitude do artista.
Mas está nesse embate entre Gullar e Nuno, ainda que velado, o cerne da discussão sobre os atuais conflitos da arte contemporânea, creio. A pendenga remete a Duchamp, que balançou todos os conceitos do mundo artístico no início do século 20, ao expor um urinol e uma série de objetos aleatórios, sem sentido aparente, denominados read-mades. A noção primária de que "tudo pode" em arte provocou um divisor de águas que se arrasta até os dias de hoje.
Como apreciador de arte, tendo a concordar com alguns argumentos de Ferreira Gullar. A noção de "belo" na arte se esvaiu, por exemplo. A "essência do belo", reivindicada por Platão no Filebo, atribui à obra de arte a necessidade de harmonia (nas cores, temas, proporções, volumes etc.) e, principalmente, de provocar no espectador o prazer em vê-la. A figura de Eros, no Banquete, representa o amor à beleza. "As coisas são belas porque conduzem a alma para além do corpo", uma beleza que "conduz à ascese", dizia Platão. As obras contemporâneas não contemplam mais a noção de beleza e muito menos provocam a ascese do espectador. Provocam, sim, um estado de estupefação, em alguns casos.
A produção contemporânea não exige mais a habilidade do artista, o talento em desenhar, fazer esboços, apurar tonalidades, calcular sombras e perspectivas. E há muito as obras se transpuseram para fora dos quadros ou dos suportes tradicionais, derivando-se em instalações, performances ou vídeos. E isso levanta questões quanto à perenidade das obras. Não necessariamente os trabalhos contemporâneos são feitos para durarem "uma Mona Lisa". Há trabalhos que duram apenas algumas horas, o período em que estão expostas em museus. Sem falar nas obras que se desintegram. Obras feitas com água, mel ou chocolate. Com gelo! Nuno Ramos experimentou parafina e sabão líquido.
Outra questão intrigante é a portabilidade de determinadas obras. Se comparadas com quadros ou esculturas, que podem ser transportados de um lado para outro e atravessar continentes, as obras contemporâneas não saem do lugar de onde foram criadas. Nuno Ramos enterrou pilares de concreto no chão como se fossem esculturas fixas. Existem trabalhos que só funcionam em um determinado lugar, num tempo específico. O ambiente é parte integrante do objeto.
E a situação se complica mais quando discutimos o mercado da arte. O que vem primeiro na era contemporânea: os movimentos artísticos (ainda que fragmentados), que provocam a criação de um mercado, ou o mercado, que influencia e direciona os movimentos? O rio não estaria correndo somente para as mãos de determinados artistas, sufocando as possibilidades de surgirem novos talentos? Qual o papel (ou o poder) dos marchands e curadores na projeção de artistas no mercado de arte?
A impressão que tenho é a de que estamos num mar de possibilidades sem fim, se aceitarmos a condição pós-duchampiana de que "tudo pode". Se tudo pode, até o que não faz o menor sentido é permitido. Outro dia vi numa exposição um tijolo com um tufo de cabelo do lado. E a obra não tinha título. Como espectador de arte, ainda que amador, careço de uma chave de interpretação quando me deparo com alguns trabalhos. Se uma obra carece de "etiquetagem", de algum texto que a explique ou que o próprio artista disserte sobre ela, não a vejo como uma obra que fala por si só.
O curioso é que essa relativização da arte põe em xeque o próprio conceito de arte. E a gente se vê numa espiral conceitual estonteante. Se tudo pode, até fazer da crise do conceito da arte uma própria forma de pensá-la é permitido. É como tentar fazer da não-arte, arte, como aconteceu na surreal "Bienal do Vazio", em 2008, em São Paulo, quando um andar do pavilhão ficou inóspito, representando um possível vácuo da atividade artística. Se tudo pode, não há mais debate sobre arte, pois todas as afirmações, ideias e referências conceituais são aceitas.
Por outro lado, esse tatear em busca de novas formas de expressão produz coisas interessantes. Talvez estejamos presenciando uma tensão que pode nos impulsionar para uma nova realidade, um novo período profícuo, mais "palpável" na produção artística, na sua conceituação e numa democratização do mercado. Não podemos desprezar de forma nostálgica algumas experimentações contemporâneas. É muito interessante ver Daniel Senise arrancar impressões do chão numa lona e articular uma obra com esses recortes. Assim como são curiosas as experimentações de Nuno Ramos com materiais nunca usados no fazer artístico.
A implicância de Gullar com os urubus de Nuno Ramos retrata essa tensão. Tensão esta carente de uma explosão para algum caminho cujo motor é a inquietação de ambos. Talvez o poeta aprovasse algumas obras do Nuno, como a série de quadros pesados, feitos com tubos, panos e plásticos coloridos ou os desenhos em carvão e guache da série Anjo e Boneco - ambos mais palpáveis, concretos, como prefere o poeta. Bom que a arte figurativa, abstrata ou volumétrica não fracassou e está correndo paralelamente, já que "tudo pode". Bom também que existam artistas inquietos, tentando fazer a história caminhar, aqui, hoje, nós, pós-duchampianos.
Wellington Machado
Belo Horizonte,
6/8/2014
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