COLUNAS
Quinta-feira,
21/8/2014
Bonecas russas, de Eliana Cardoso
Eugenia Zerbini
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Bonecas russas, lançado em julho pela Companhia das Letras, marca a estreia literária de Eliana Cardoso. Na capa colorida, destaca-se, além do título e do nome da autora, o lembrete: novela. Lord Byron (1788-1824), em Don Juan II, referindo-se às mulheres, adverte que "some play the devil - then write a novel"(algo assim "algumas pintam o diabo, depois escrevem um romance") . No caso dessa autora literária estreante, a apresentação que pode ser lida em uma das orelhas do livro, revela outras coisas.
Eliana Cardoso, mineira de Belo Horizonte, é economista, phd pelo lendário Instituto de Tecnologia de Massachussets (MIT, na sigla em inglês). Trabalhou para o Banco Mundial na China, Índia, Paquistão, entre outros países da Ásia. Foi professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e desde 2000 é colunista do jornal Valor Econômico, em que assinava uma coluna sobre economia, até um ano atrás. Desde então, transferiu-se de malas e bagagem para o caderno "EU & Fim de Semana", mantendo uma página quinzenal (alternando-as com as assinadas por outra escritora, Tatiana Salem Levy). Eliana Cardoso, como boa leitora, optou por tornar-se escritora. Perdeu a ciência sombria (the dismail science), como a economia foi apelidada por Carlyle, ensaísta e historiador do século XIX. Ganharam os leitores de boa ficção.
Bonecas russas conta histórias de mulheres. Leda, Lola, Francisca - que também é Chica e Chiquinha -, Rosália. Tem ainda Odete, além de Miranda. E seus homens. Mulheres que se alternam nos papéis de mãe, irmã, prima, enteada, ora aceitas, ora rejeitadas. Apaixonadas, desencantadas, enganadas, assassinas... Enfim, complexas. Multifacetadas.
"Com o corpo ereto, os braços estendidos ao lado do tronco e as palmas das mãos voltadas para a frente, Leda apareceu nua no vão que separava a cozinha da sala de jantar. - Lola.Olhe. - O quê? - Quero saber o que você vê. - Uma velha pelada. - Detalhes. Os detalhes querida. - Pelos pés. - A seus pés depositei meus sonhos. Pisa leve. Sobre eles você caminha".
Diálogos correntes, referências a outros autores (no trecho acima, uma alusão ao poeta W.B. Yeats). Divagações
"- Não sei o que me prendia a ele. Talvez eu visse nele a inteligência que eu não tinha. Talvez fosse a curiosidade de menina me empurrando, da menina que não sabia fazer perguntas e precisava aprender com a carne. Curiosidade, talvez. Ou uma ausência. Ele tinha alguma coisa que me negava e que eu queria. Não sei direito. Fui escorregando e o objeto do meu desejo parecia cada vez mais longe. Cassiano dava a impressão de zombar de mim. E minha curiosidade acabou se transformando no desejo de provocar nele alguma reação. Um declive imperceptível pelo qual eu deslizava, e no fundo da longa descida apenas o abismo onde estava aquele homem insensível e obstinado)".
E o humor, o sal da terra, como acontece na digressão acerca da magna quaestio bizantina: quantos anjos podem dançar no cabeça de um alfinete? Ou ainda de uma agulha? A narração em Bonecas russas assume a forma de falsa espiral, já que com vários centros. Há o diário de uma, o e-mail de outra, uma conversa (chat) virtual, bilhetes esquecidos em mesas de cabeceira. Relatos. Fatias narrativas que compõe um todo de inspiração e equilíbrio.
O lançamento de Bonecas russas deu-se na semana anterior ao início da última Festa Literária de Paraty (Flip), o que serve de gancho para comentar o mais novo tique (ou síndrome?) que ganha espaço no mercado editorial: o jovem - e, note-se, cada vez mais jovem - escritor de sucesso. Em breve, a regra será publicar o primeiro livro antes da obtenção do título de eleitor. Sim, o mito da juventude, que no século XVI mesmerizou Ponce de Léon (1460-1521) e hoje é perseguido pelo mundo da moda e do marketing, passou a ser tendência forte nas editoras (tal qual as malhas nos tons bege claro e ocre mineral estarão na moda em 2014/15, segundo a revista Vogue). Com direito a agente literário assumidamente voltado para essa janela de mercado. Estreante maduros, assim, se tornam pontos fora da curva, no descarte de uma tradição de nomes maduros que transgrediram nas letras. Como exemplos, o despudorado Marquês de Sade (1740-1814), que, no século XVIII, escreveu na prisão Justine aos 47 anos, publicado em versão completa aos 51 anos do autor; Charles Bukowski (1920-1994), irreverente, inconformado e inconformista, matriz para legiões de jovens que vieram depois, ícone pop,fez sua estréia em prosa depois dos 40; e José Saramago (1922-2010), que, não obstante os versos cometidos na juventude, fez sua estreia em prosa, com suas pontuações desafiadoras, quando tinha mais de 50. O que não lhe impediu de ser agraciado com o Nobel. Audácia e ousadia também podem ser virtudes da idade.
Bonecas russas ousa. Traz em suas páginas ao mesmo tempo profundidade e frescor, como um bom Pouilly Fuissé, da Bourgogne. Taças ao alto para um brinde a essas bonecas. E aos "happy few", lembrando Stendhal, seus felizes leitores. Longa vida literária para Eliana Cardoso.
Eugenia Zerbini
São Paulo,
21/8/2014
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