COLUNAS
Quinta-feira,
11/9/2014
O pródigo e o consumo
Eugenia Zerbini
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M.Chagall, O filho pródigo
Em certas esquinas, Literatura e Direito tropeçam e se cruzam. Em Eugénie Grandet, do gigante das letras francesas, Honoré de Balzac (1799-1850), por exemplo, há uma bela definição de falência: - Qu'est-ce que c' est, mon père, que de faire faillite? demanda Eugénie. - Faire faillite, reprit le père, c' est commettre l´action la plus desonorante entre toutes celles qui peuvent déshonorer l' homme (O que é, meu pai, falir?, perguntou Eugénie. - Falir, respondeu o pai, é a ação mais desonrosa entre todas aquelas que podem desonrar o homem). A lição de Direito Comercial pode estar desatualizada, embora o talento do seu autor mantenha-se intacto.
Crime e castigo, de Dostoiéviski (1821-1881), e O processo, de Kafka (1883-1924), são dois marcos da intersecção entre Direito e Literatura. De tão citados nas boas aulas de Direito, transformaram-se em lugar comum desse cruzamento entre letras e normas. Apesar do fato, sabido, de que se a Literatura descreve, o Direito prescreve. Distante dessa mesmice, desponta a inspirada dissertação de mestrado de Tiago Luis Pavinatto Gonçalves, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Há tantas qualidades em seu trabalho acadêmico que o resultado final equivale a um trabalho limítrofe com o literário.
Em sua dissertação, Pavinatto debruçou-se sobre a figura do pródigo na sociedade de consumo. Pródigo é aquele que gasta imoderadamente, colocando em risco seu patrimônio e o de sua família. A prodigalidade pode levar a pessoa a perder, após uma ação judicial, a capacidade de administrar seus bens - implicando uma responsabilidade jurídica relativa, segundo o jargão do Direito - com o objetivo de preservar a subsistência tanto do pródigo como daqueles que dele dependam. Até aí, nenhuma novidade. O elemento inovador do ensaio de Tiago Pavinatto (sim, pela qualidade e estilo, trata-se de um belo ensaio jurídico, recuperando a tradição ensaística e extrapolando os limites áridos do formato acadêmico) vem, em primeiro lugar, em situar o pródigo num momento social que todos são incitados a consumir; em segundo, em analisar a figura do pródigo à luz dos avanços na medicina psiquiátrica.
A ousadia começa na dedicatória: aos loucos de todo o gênero, sendo confirmada na epígrafe absolutamente literária, com a pertinente citação de J.G. Ballard (1930-2009): "O consumismo pode parecer pagão, mas na verdade é o último refúgio do instinto religioso. Em poucos dias você verá uma congregação venerando suas máquinas de lavar. A pia de água benta que unge a dona de casa a cada manhã de segunda-feira com a benção do ciclo do amaciante de roupas..." (O reino do amanhã).
A prodigalidade é mais que antiga: é bíblica. Gastar em excesso e dilapidar o patrimônio, foi atividade que chegou a ser associada a outros pecados. Luxúria, na Antiguidade, foi palavra empregada também para referir-se à prodigalidade. Paradoxalmente, a prodigalidade, nos séculos XVII e XVIII, passou a ser associada, senão à virtude, a atributo da nobreza, em contraste com o comedimento burguês. Mas o que nos interessa é a atualidade. Como compor a prodigalidade em face do incentivo à gastança não só na sociedade de consumo, mas numa sociedade em que governos, além de incitar os gastos e o endividamento dos cidadãos, como forma de blindar o crescimento da economia contra o fantasma de recessão, dão maus exemplos quanto ao controle de seus gastos?
Amparado por idéias de Claude Levi Strauss (1908-2009) (O suplício do Papai Noel), Zygmunt Bauman (1925 -) (Vida para consumo), e Jean Baudrillard (1927-2007) (A sociedade de consumo), esse jovem mestre colore seu discurso jurídico. Se a moderação nos gastos foi virtude, até a era industrial, na atual sociedade pós-industrial e de consumo é defeito: sovinice.
Com base no entendimento da psiquiatria moderna de que gastar em excesso, embora não uma doença em si, é um dos sintomas de doença maníaco depressiva e de outros transtornos mentais, o autor indica, na conclusão do trabalho, uma proposta de revisão legal. Segundo essa sugestão, os pródigos cessariam de ser nomeados de modo expresso, nas hipóteses de incapacidade relativa do Código Civil, passando a ser acolhidos na categoria da enfermidade mental.
Isso no plano individual. No plano público, do Estado, outro cenário se impõe, relacionado, por um lado, à prodigalidade emulada pelo governo (por meio de políticas de acesso fácil ao crédito como forma ou de turbinar PIBs combalidos ou de proteger a economia contra impactos das recessões internacionais), e, de outro, pela prodigalidade adotada pela Administração em seus gastos. Todavia, a expansão do crédito, via empréstimos bancários ou cartões de crédito, induziu a criação de exércitos de consumidores endividados. Por sua vez, o Estado é perdulário: a Administração Pública, em todos os níveis (Federal, Estaduais e Municipais), por meio de seus três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), dá mostras de mau governo de seus bens. As evidências estão na mídia.
Para quem quiser conferir, o trabalho "Da natureza jurídica da prodigalidade na sociedade de consumo" em breve estará disponível na biblioteca digital de teses (e dissertações) da USP. Entretanto, os originais estão sendo preparados para edição comercial. O título será um pouco diferente, menos acadêmico certamente. O conteúdo, porém, o mesmo. No momento em que nas Faculdades de Direito faz-se o elogio aos "operadores do Direito", a dissertação de Tiago Luiz Pavinatto Gonçalves, com todos os requisitos de uma tese de doutoramento, recupera, com verve e estilo, o lugar do Direito no escaninho das Ciências Humanas, onde o estudo das leis convive com as lições da Literatura, da História, da Filosofia e da Sociologia. Longe das reduções.
Eugenia Zerbini
São Paulo,
11/9/2014
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