COLUNAS
Quinta-feira,
30/10/2014
O anoitecer da flor-da-lua
Elisa Andrade Buzzo
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A flor-da-lua vai se abrir, e viajo quilômetros para acompanhar seu raro desabrochar. Venha ver a flor-da-lua: recebi o chamado daquela de quem eu me ocultava. O claro espetáculo dá-se apenas pela noite; e pouco dura. É assim, dizem, tão lindo o seu cheiro. Mas como é este cheiro que se sente apenas enquanto a flor está aberta, na noite? De sabonete. Mas algo bom, que se quer sentir o tempo inteiro?
Então pela estrada fico a imaginar como será esta flor de tão belo nome, flor-da-noite, flor-de-baile. Será ela assim também bela, alva como a luz da lua? Refletirá não só sobre o mundo calmo das plantas, mas também sobre a conturbada humana existência? Terá uma aproximação especial com satélites e astros, tão afeita à madrugada e às coisas elevadas? Mas se fantasio sobre a sua existência e em rodeios floreio pensamentos.
Recebo, aí, uma foto pelo celular. A flor-da-lua é estranha, com longos e grossos caules tal qual vasta e selvagem cabeleira e uma pequena flor avermelhada, cujo centro é amarelado, com pétalas firmes e longilíneas que se abrira anteriormente a um outro broto que me aguarda.
A noite corre alta, quando finalmente avisto um vaso grande e fundo no jardim de inverno. Isto também me assusta, a fundura da coisa. Não é apenas o luar que lança uma luminosidade frouxa sobre o ser, mas também os faróis na estrada ao longe. Esta planta é afinal um ser vivo espinhento e mais rígido do que eu poderia supor. Dos seus caules longos e duros, tão duros que chegam alguns pedaços a se quebrarem - é da família das cactáceas - pendem raízes finas. Finas, finos pelos saem com certa ordem grosseira pelas bordas de sua pele verde e áspera. Também há espinhos, vários, escondidos nos caules, quase despercebidos, enquanto na região logo anterior ao botão fechado uma redoma deles se concentra, cinzenta, perigosa, nojenta.
Tomo certa distância desta planta trepadeira e aromática. Se assim é, romântico ser... Sua aparência não é bem de viço, antes de uma força desconjuntada de quebrar costelas. Mantenho, então, imersa nas sombras a flor-da-lua, observando-a de soslaio, pelo canto do sofá. Então, foi por ela que vim até aqui, para contemplar seus perigos que mais parecem uma escova de cabelos cortante, manipular o peso de sua substância por dentro suculenta? Se estas pétalas ainda tão fechadas mais parecem dedos bordôs, de uma mão que se nega a abrir-se para as minhas.
Ah, qual é seu temperamento; mas pode-se entender, pois quando enfim mostrar-se, sob o signo e o silêncio da abertura noturna, em pouco tempo se fechará e curta será sua duração. Oferta difícil a dessa flor, tão pouca disposta em tanto caule. Em uma ou duas noites ela irá ceder aos encantos ou aos desígnios de seja lá o que for - natureza, realeza, malvadeza. Aí sim me ofertará sua imagem inteira, não importa se sob luz mortiça e abstrata. Enquanto isso, da ponta de um pedaço de caule se apresenta como um miúdo, mas visível botão, a lança rubra conquistando tempo a tempo seu espaço.
Elisa Andrade Buzzo
Vinhedo,
30/10/2014
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