|
COLUNAS
Quinta-feira,
27/11/2014
Memorial do deserto e das ruínas
Elisa Andrade Buzzo
+ de 2800 Acessos
Neste lugar fora erguido um memorial, em um pedaço azul de céu nos idos dos anos 1980, hoje engolido pelos prédios, fábricas, vias, faculdades. Memorial imenso e alvo, em homenagem à uma América Latina sangrenta. É quase num platô, ornado com poucas palmeiras e espelhos d'água, que sobem os edifícios de Niemayer, tão luminosos e espalhados que mais parecem manchas brancas, miragens desérticas vistos daquelas ruas tristes que os circundam.
Ressoa na aspereza da manhã a marcha silenciosa de trabalhadores e estudantes. Bandeiras sujas e rasgadas tremulam leves. A solenidade do lugar parece não atingir aqueles que fazem do memorial seu caminho de acesso à estação de trens. Cigarro e lixo pelo chão, pela grama que circunda em espaços vazios essa área de passagem da Barra Funda. E uma lixeira infestada de sujeira velha e esquecida repousa.
Uma atmosfera interiorana rara de comércio e vilas antigas marca esta paisagem entre a desolação e a serenidade: gorduras ressequidas na calçada, inúmeras marcas já negras de chicletes descartados, e rostos subindo a rampa, saindo daquela transição de clima à beira do desértico, recém-adentrando na realidade de seus afazeres, enquanto vou na contramão desta mesma multidão recorrente.
Recostada ao gradeado do memorial, uma banca de camelôs parece a cada dia aumentar sua oferta de mercadorias, eletrônicos, bijuterias, cobertores coloridos empilhados. Uma mulher rearranja pequenas quinquilharias numa fornitura preta e arredondada, porque a vida é feita não só das construções grandiosas esquecidas pelas gentes, mas das pequeníssimas coisas.
Da organização da vida em parcelas mínimas, mas possíveis, das transferências e do caminhar diário e autêntico, seja em meio à imundície, seja nas transcendências desta arquitetura sinuosa e pura. A cada dia é preciso muita paciência para atravessar a música ausente destas paragens secas, impenetráveis pelo castigo que o sol impõe a quem por elas se desvia. E em pleno pico, se apresenta o charlar atônito de uma ave empoleirada em destroços.
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
27/11/2014
Quem leu este, também leu esse(s):
01.
Efeitos periféricos da tempestade de areia do Sara de Elisa Andrade Buzzo
02.
O reinado estético: Luís XV e Madame de Pompadour de Jardel Dias Cavalcanti
03.
90125: o renascimento do Yes de Diogo Salles
04.
Shows da década (parte 1) de Diogo Salles
05.
A Amazônia sem pátria de Félix Maier
Mais Acessadas de Elisa Andrade Buzzo
em 2014
01.
A Copa mais triste de todos os tempos - 12/6/2014
02.
Quando as rodas param - 25/9/2014
03.
Lina Chamie e sua cartografia sentimental de SP - 6/2/2014
04.
Noites azuis - 28/8/2014
05.
A natureza selvagem da terra - 1/5/2014
* esta seção é livre, não refletindo
necessariamente a opinião do site
|
|
|
|