O Carnaval está chegando. Estar no Nordeste e ficar fora dessa festa é quase impossível. Nunca fui muito chegada em pular carnaval, ainda mais quando as marchinhas deram lugar aos axés e pagodes da vida. Aqui em João Pessoa, como em outros lugares do Nordeste que não conseguem competir com Recife e Salvador nos quatro dias de folia, o que salva a fama da cidade é a micareta, ou seja, o carnaval fora de época. Repetindo a fórmula que deu certo na Bahia, a Micaroa (Micareta + João Pessoa), assim como outras micaretas, organiza três dias de festa no estilo trio elétrico – abadá – camarotes. Nada que lembre o bom e velho carnaval. A começar pela exclusão. Se o carnaval é uma festa tipicamente popular, democrática, a micareta é elitista. A não ser que você queira ver o trio passar da calçada, precisa pagar mais de R$ 200,00 por um abadá. No entanto,o que ainda salva o carnaval autêntico, tradicional, é o Folia de Rua, típica de João Pessoa. Para não correr o risco de competir com a vizinha Recife nos dias de carnaval propriamente ditos, o Folia de Rua acaba sendo uma prévia.
O Folia de Rua começou no fim de semana passado, mas o ponto alto acontece na quarta-feira antes do Carnaval, chamada Quarta de Fogo. Contrapondo à Quarta de Cinzas, que encerra a festa, esta é aquela em que a cidade pega fogo na animação. Do alto do bairro do Miramar, de onde se avista a orla de João Pessoa, começam a descer para a praia os foliões do bloco Muriçocas do Miramar. O Muriçocas nasceu na década de 80, quando alguns artistas e agitadores culturais formaram o bloco e saíram nas ruas para festar. Na época, o bairro do Miramar era infestado de pernilongos – ou seja, muriçocas -, o que levou o povo a se vestir como os detestáveis insetos. O bloco pegou, ficou famoso é hoje é o segundo maior bloco de arrasto do mundo, perdendo apenas para o Galo da Madrugada.
Nesta Quarta de Fogo, quem desce com o Muriçocas de Miramar não vai escutar axé nem pagode. As atrações dos trios vão de bandas locais – de frevo e “rock regional” – a Moraes Moreira e Chico César. É carnaval autêntico, democrático e popular. Na chegada à praia, uns 3 quilômetros depois, os trios se reúnem e formam uma roda, continuando a festa. O Muriçocas do Miramar acaba sendo uma reunião de vários outros blocos menores, que se juntam e formam a multidão que percorre a avenida Epitácio Pessoa até a praia de Tambaú.
Ao contrário da Micaroa, cuja freqüência predominante é de adolescentes, o Muriçocas reúne gente de todas as idades e perfis: famílias, homens, mulheres, gays, crianças, os próprios adolescentes. Cada um procura sua turma, acha seu espaço e aproveita a festa. E o melhor: não é a importação de uma cultura estranha, pasteurizada. Quem deveria perceber melhor isso é o poder público, que não dá ao Folia de Rua o mesmo apoio financeiro que oferece todos os anos à Micaroa. A Micaroa é “vendida” externamente como um produto turístico. As pessoas que vêm para a Micaroa são as mesmas que fazem a rota das micaretas pelo Nordeste. Vender o Folia de Rua para o turista de outras partes do país e do exterior seria muito mais interessante e produtivo. Para que concorrer em um segmento superlotado, se você tem algo original e autêntico para oferecer?
Não sei se ainda existem muitas muriçocas incomodando os moradores do Miramar, mas uma delas permanece firme e forte o ano todo, só esperando a folia que antecede o Carnaval. É uma muriçoca enorme, feita de metal, que fica na principal praça do bairro. Hoje ela vai ter a companhia de milhares de pessoas. Se eu encarar a festa também, enquanto você está lendo esta coluna, caro leitor matutino, espero estar me recuperando do fogo dessa quarta-feira. E o Carnaval, propriamente dito? Para quem quer descansar, João Pessoa é o lugar ideal. Só as muriçocas – os insetos mesmo – vão ficar na cidade...
*Trecho do hino do Muriçocas do Miramar: "São as muriçocas, espalhando alegria, de Tambaú ao Rio Sanhauá". Tambaú é uma das principais praias da cidade, e o Rio Sanhauá é o local onde desembarcaram os colonizadores portugueses que fundaram João Pessoa. O rio e o oceano são os limites da cidade, que ao contrário de outras capitais litorâneas, não foi colonizada pelo mar.
Adri, daqui destas paragens nevadas e fleumáticas, fiquei devaneando ao ler sua
coluna, com uma espécie de saudade do futuro, já que nunca pulei
carnaval. Mas que maravilha, nas suas palavras, esta quarta de fogo
(hoje!).
Só não tenho certeza quanto à sua proposta de que o poder público
deveria investir nas Muriçocas. Será que isso não iria
torná-las "oficiais" demais, institucionalizadas, big
business? Será que no fim não virariam mais um produto cultural para consumo comercial (e elitizado)? Ou será que fiquei cética demais?
Dani
Também nunca tinha pulado Carnaval nesse esquema, mas foi bem bacana. Enquanto estava lá, vendo o trio do Moraes Moreira passar com o governador em cima, fiquei pensando no seu comentário, e acho que você pode ter razão. O apoio do poder público pode "pasteurizar" a festa para vendê-la como produto turístico. Mas pior ainda será quando a iniciativa privada descobrir o poder do Folia de Rua, e os produtores culturais começarem a correr atrás de grandes patrocínios, como acontece com a Micaroa. Aí sim a força do dinheiro, do investimento das grandes marcas, vai pasteurizar o carnaval daqui, para que ele possa ser consumido pelo maior número de pessoas, inclusive com "adaptações" para o consumo em outras partes do país. Por outro lado, o governo poderia ter um papel diferente nessa história, se existissem políticas culturais sérias, que fossem implantadas sem a necessidade de deturpar uma manifestação popular autêntica. A cultura, no Brasil, acaba num beco sem saída: ou se rende à ditadura do patrocínio para conseguir verba, ou vai acontecendo aos trancos e barrancos, com independência mas pouco dinheiro.