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COLUNAS
Quinta-feira,
8/1/2015
Paixões e baratas
Elisa Andrade Buzzo
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Havia algo mais escuro, mais misterioso e tenebroso que a noite a percorrer o piso, estreitando-se ao gabinete da pia da cozinha. Que eu a encontrei assim, já paralisada, logo que acendi a luz posso dizer, e mesmo de alguma forma sentia uma presença de ser vivo dentro do apartamento quase desabitado, antes habitado por mim e insetos esporádicos.
Ambas imóveis pela surpresa de nossas presenças solitárias e indesejadas, nos espreitamos cheias de medo. Estávamos então urdidas uma na outra, a inação de uma aguardando a ação da outra, que assim face a face nos reconhecemos, espécie de irmãs silenciosas em meio ao lixo aberto da cozinha, os restos das nossas vidas dispostos na escuridão de um cômodo deserto.
E então ficamos certo tempo que não se pode contar nos encarando. Porque eu e ela tínhamos cada uma uma face preenchida de sombras e sustos. A desesperança do que viria na sequência, distendidas de antemão estávamos no chão da cozinha. Espertas que somos também sabíamos a hora de agir e a hora de ficar caladas, paradas. Quando não sabemos o que fazer não fazemos nada, era nosso lema temporário, mas de certa forma permanente, preventivo.
Aproximei-me pouco a pouco, e a lentidão do momento em que mal se movimentou me fez ver de perto sua cara pontuda e marrom clara nas extremidades, suas antenas balouçantes, sua enormidade revelada que talvez não coubesse na sola do tênis suspenso antes do golpe. Só sei que muito pensei - como pôde a personagem de Clarice a degustação ontológica de um animal tão temerário quanto eu? E se antes entendia apenas a fragilidade de Gregor Samsa e repudiava sua família desumana diante de sua grotesca forma, agora iniciava uma compreensão diferente.
Quem tinha mais medo de morrer, quem tinha mais medo de viver - a barata ou eu? Só sei eu que não poderia perdê-la de vista, não poderia dormir com ela e nossas impurezas andando pela casa. Nosso encontro era o primeiro e deveria ser o derradeiro. Isso porque a revelação é rápida e os tiros por vezes certeiros. Tirei então o tênis do pé direito e, lentamente, me aproximei dela, sendo que não poderia deixar que fugisse, se entranhasse por debaixo de sonhos e móveis. E o que ela intuiu só ela sabe, embora espelhadas fôssemos, eu e ela, na vida e na morte.
Elisa Andrade Buzzo
Vinhedo,
8/1/2015
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