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Sexta-feira,
16/1/2015
Como ser um Medina
Ana Elisa Ribeiro
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Não me ligo em surfe. Não entendo as regras nem lhufas. Não sei o apelido de nenhuma manobra. Kelly Slater era um nome que me soava familiar, mas talvez eu não soubesse responder sobre ele a um quiz de múltipla escolha. Só que certas coisas acontecem e a notícia vem como uma onda pra cima da gente. É um esquema meio tsunami: você não quer saber, mas todo mundo diz, todo mundo comenta, todo jornal dá notícia, todo programa mostra, as revistas estampam, todos os amigos e conhecidos têm algo a dizer a respeito do ocorrido. Então eu tomei contato com a história - meio distorcidinha - do Gabriel Medina.
Só que eu não sou dessas pessoas que passam a gostar de tudo o que está na crista da onda. Eu não sei nada de surfe nem de tênis, e continuo sem saber. Eu sei respeitar e admirar o cara (ou a moça) que está lá no pódio, mas eu não viro uma chefa de fã clube depois que algo assim acontece. E também não nego que acontecimentos assim possam despertar alguns gênios para a coisa. Bom, o problema é quando as pessoas acham que vão "virar", mais ou menos como as borboletas. Elas querem ser a exceção, querem se transformar. Aí, não. Aí eu acho que algo ficou mal explicado. Como disse um amigo meu, esse pessoal que cresceu na "pedagogia do gostoso". Pois é. Esforço e disciplina valem como regra. E olhe lá.
Dia desses, eu trafeguei de avião de uma cidade para outra, neste Brasilzão, e resolvi ler a revista de bordo. No meu bolsão não tinha, mas aí eu pedi a revista que dava sopa no bolsão ao lado. Meu vizinho, muito simpático, com jeito de homem de negócios, deixou que eu tomasse de empréstimo aquele volume de textura gostosa. E a capa era bem uma foto grande e iluminada do campeão Medina. Então, corri pra ler um perfil dele, personagem sobre o qual eu já cultivava alguma curiosidade.
Aí eu me dei conta da simpatia que eu sentia pelo garoto, apesar de lamentar pela idade dele, mas de curtir aquela família unida e alerta, e de achar que "não há como segurar a primavera" - como diria um grande amigo meu -, mas de confiar na possível boa criação do rapazote. O elemento que me comoveu não foi a onda perfeita, nem foi o choro do menino, nem mesmo foi a bela história que ele tem com um padrasto que insiste em adotar como pai - a despeito de uma imprensa que insiste em não deixar que eles se adotem. O que me comoveu foi a narrativa sobre o esforço e a dedicação de Medina.
Li a matéria da revista a cada minuto mais encantada com aquele guri que disse o que queria ser, que sabia o que queria ser, que encontrou uns caras que o ajudassem e apoiassem de verdade, que tinha uma família confiante, que estudou, estudou, estudou - sim, surfe também se estuda -, que enfrentou disciplina e foco, para ir se aperfeiçoando, superando e tal e coisa até se tornar campeão mundial.
Não adiantava ter costas quentes nem largas; ser amigo do rei; ganhar tickets pra Pasárgada; conhecer a filha do dono; paquerar a prima do imperador; ter amigos no staff; pedir a ajuda da comunidade; fazer propaganda comovente; ter nascido em berço de ouro ou disto e daquilo; arranjar estágio na empresa de prancha... Não adiantava. Não fazia a menor diferença. O lance é que, pra ser o campeão mundial de surfe, o cara, o próprio cara, tem de surfar bem, fazer a manobra perfeita, na hora certa, quando o mar tá pra peixe. O cara precisa surfar muito, ter muitas horas dormidas e mal dormidas, muito campeonato perdido, muito patrocínio crente, muito desgaste nas juntas, muita prancha quebrada, muito maiô puído, muita salada de alface... muito tudo o que ele fez - com a ajuda sincera de uns e outros - para chegar lá. E quando ele chegou, não esqueceu de ninguém. E um montão de gente, de repente, se lembrou dele, e começou a ser amigo dele, e a chamá-lo para as festas.
O que me comove, resumindo, é raça. É gente que sabe o que quer, mas que sabe também o que tem de projetar e fazer pra chegar lá. E faz. E chega, quando dá. E gente que ouve, que aprende, que tem o apoio de gente mais experiente, que traça um caminho - ou vários - e manda ver. Aí eu fiquei vendo aquele adolescente que se dedicou a ser campeão. E fiquei pensando que nem todo mundo quer ser campeão, claro. Nem precisa querer. E me lembrei do Fernando Pessoa, quando ele dizia que todos os amigos dele eram campeões em tudo, mas que ele era reles e vil. Mas, todo mundo sabe, o Pessoa era uma fera. Uma fera!
Então não adiantava o Medina ter amigos na diretoria nem ser filho do dono do campeonato. Pra ser campeão em algumas coisas, a pessoa precisa estudar, mandar bala, endurecer, apertar, por as duas mãos na massa. Não adianta namorar a princesa nem ser vizinho do gerente. Sacumé?
Deve rolar politicagem, lobby, diz-que-diz, atravessamentos, desqualificação. Deve sim. Mas quem define, ó, é o cara ali, em cima da prancha. Boa prancha, bom atleta, ondas perfeitas. Fazer o quê? Não é matemática. É uma mistura de arte com um monte de outras coisas. Não é como em outros campos, feito, sei lá, a literatura, por exemplo. Mas deixa essa história pra lá, né, Medina?
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
16/1/2015
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