COLUNAS
Quarta-feira,
4/2/2015
O Velho e Bom Complexo de Inferioridade
Marilia Mota Silva
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Se você não viu ainda, procure na rede um desses youtubes com crianças tocando violão, violino, piano com a maestria de velhos virtuoses e a alegria de quem mal saiu do berço. Um fluxo de serotonina inunda nossa mente e nos faz sorrir para a tela, embasbacados e contentes. Faz bem à saúde.
Recomendo porém doses pequenas, para não correr o risco de sofrer estranhamento, quando em contato com o mundo normal, cotidiano. Foi o que me aconteceu outro dia. Fui a um recital na escola das crianças.
O professor de música - jardim-de infância e primeiro-grau - que se dá o prestigioso título de Director of the Performing Arts, promove vários recitais ao ano, a que os pais comparecem religiosamente, pois ninguém se arrisca hoje em dia a causar qualquer dano à auto-estima do infante.
Às cinco da tarde eles, mães e pais, começam a chegar esbaforidos, ainda com pasta, laptop e roupas de trabalho. Já se encontra no salão um profissional a serviço da escola, postado diante da câmera montada no tripé, mas mesmo assim cada um procura o melhor lugar para filmar seu filho, sem perder uma nota.
Dois pianos, um ao lado do outro, sugerem performances em quatro, oito mãos! Ao lado, há cadeiras e stands com pautas, como nas orquestras. Testam-se microfones, fios, cordas. As crianças, vestidas em preto e branco para a ocasião, esperam com suas flautas, violinos, violões.
A frequência dos concertos dispensa formalidades. Após os cumprimentos, a primeira criança é chamada. Silêncio, câmeras. Do mi sol, o menino toca.E repete: do, mi, sol. De novo: do, mi, sol, e mais uma vez do, mi, sol. E finalmente! Do, mi, sol. Nem ao menos um sol mi do pra variar. Levanta-se, agradece e sai sob aplausos.
O professor chama o próximo, um piazinho de uns cinco anos. Ele toca duas notas e vai embora. Aplausos. Um pai chega aflito, atrasado, carregando um violão, enfrenta a barreira de crianças sentadas no chão, com licença, com licença, entrega o violão à filha. Ela e quatro companheiras são chamadas ao palco.
Esbarrando em fios, pernas de cadeiras, elas tomam seus lugares diante do tripé onde ficariam as pautas.
O professor as envolve com um sorriso orgulhoso que me inspira confiança. Otimismo, alguém disse, é doença incurável. Enfim, elas e violões se ajeitam, o professor gira o pulso, os dedos juntos como se empunhassem uma batuta, um, dois, três e ... liga o som. Põe um CD pra tocar! As meninas, nos seus nove, dez anos, com um sorriso entre nervoso e constrangido, começam a tocar junto com a música, só com a mão direita, só o blom, blom, blom, marcando a batida. Quase no ritmo!
Duas meninas tocam Frère Jacques no violino, num arranjo original: uma delas começou a peça, a segunda esperou seis compassos e entrou, perseguindo a primeira. O resultado foi atroz! Dante criaria um nicho no primeiro círculo para ofensores desse tipo.
Na plateia, rostos resignados, nenhum sorriso, nem mesmo a troca de olhares solidários, comum nessas ocasiões.
O professor, esse sim, uma nota radiante: braços erguidos, marcando o compasso, a mão dançante, a batuta invisível. Sua filosofia, os pais conhecem e aprovam: ele quer atrair para a música todas as crianças que tiverem interesse em aprender um instrumento. Não quer que um possível preconceito - lições de música seriam elitistas - afaste alguma criança. E, principalmente, não quer que nenhuma delas sinta-se diminuída, sofra arranhões em sua auto-estima. Quem pode ser contra isso? No entanto, há um equívoco evidente, o rei está nu, todos veem, exceto o professor, ao que parece.
A fé no poder da auto-estima, como solução para todos os problemas, desde a gravidez prematura até a violência, surgiu nas últimas décadas e foi ansiosamente adotada por pais, educadores, profissionais da área.
Em 1984, a California chegou a criar uma força-tarefa de auto-estima. Tudo o que pudesse ferir o ego da criança foi extirpado. No futebol não se contavam mais os gols. Ninguém perdia. Todos ganhavam troféus. Críticas foram substituídas por elogios, mesmo imerecidos.
Em uma escola em Massachussetts, na aula de educação física as crianças pulavam corda sem a corda - para evitar vexame, caso tropeçassem.
Acreditava-se que elogio, auto-estima e desempenho subiam juntos ou caíam, na mesma medida. Quinze mil trabalhos acadêmicos foram escritos, entre 1970 e 2000, confirmando essa crença. Mas, como sabemos, a realidade ignora a teoria.
O livro Nurture Shock, de Po Bronson $ Ashley Merryman, 2009, analisa vários estudos e pesquisas sobre o assunto e propõe uma "Nova Maneira de Pensar Sobre As Crianças", como diz seu subtítulo. Alguns pontos interessantes:
- Dizer a uma criança que ela é inteligente, capaz, talentosa, que pode conseguir o que quiser, contribui para que ela tenha uma visão inflada de si mesma, mas não a torna mais capaz, não se traduz em boas notas na escola, nem em realizações profissionais. Não reduz o alcoolismo, nem problemas de interação social. E não diminui a violência. Ao contrário.
- Pessoas altamente agressivas e violentas costumam ter alto conceito de si mesmas, desbancando a teoria segundo a qual as pessoas se tornam agressivas para compensar sua baixa auto-estima.
- O elogio deve ser específico e honesto. Deve-se elogiar o esforço da criança. Se a pessoa foi bem sucedida graças a seu trabalho, isso lhe dá algum controle sobre seu sucesso. É sua ação, empenho e disciplina que lhe dão confiança e auto-estima.
- Aprender a lidar com a frustração é indispensável para o desenvolvimento da criança. Condescendência e super-proteção criam pessoas vulneráveis, incapazes de lidar com a realidade.
A geração que está hoje nos vinte, trinta anos, "geração milênio" criada sob esse mantra do apoio incondicional e reforço constante da auto-estima, é mais uma evidência de que é preciso rever esses conceitos.
O aumento do número de casos de depressão entre jovens adultos e universitários tem alarmado pais e profissionais de saúde. No trabalho, esses jovens esperam aplausos e avanço imediato na carreira, quando fazem o mínimo pelo qual estão sendo pagos. Se isso falha, sentem-se inseguros e ressentidos. Pedem as contas. Muitos voltam para a casa dos pais, incapazes de trabalhar meio-expediente, socializar e cuidar das próprias roupas.
A política do elogio e da proteção da auto-estima criou uma geração dependente, frágil e que se julga com todos os direitos. Nessas circunstâncias, já há quem fale em resgatar das masmorras do passado, o "bom e velho complexo de inferioridade". Extrapolando um pouco, seria como os que, entre nós, desejam a volta dos militares.
Sem ir a extremos, o fato é que, de graça, sem pedir contrapartida, até aplauso é deletério: desconstrói o "beneficiado", exatamente o oposto do que pretenderia o doador bem-intencionado.
Marilia Mota Silva
Washington,
4/2/2015
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