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Segunda-feira,
26/1/2015
Alcorão
Ricardo de Mattos
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Em nome de Allah, O Misericordioso, O Misericordiador.
"Não há para o estudioso nenhum sistema filosófico antigo, nenhuma tradição, nenhuma religião a negligenciar, porque tudo contém os germes de grandes verdades que, ainda que pareçam contraditórias umas com as outras, esparsas que estão no meio de acessórios sem fundamentos, são muito fáceis de coordenar". (Allan Kardec)
Assim começa um dos textos primordiais da humanidade, palavra de Deus trazida ou inspirada pelo anjo Gabriel ao profeta Muhammad e fundamento de civilizações. Que dizer deste repositório de princípios e de ensinamentos tão sagrado quanto a Bíblia, a Torá, os Vedas, o Baghavad Gita e outros textos que conduziram e conduzem os homens através dos tempos, instrumento que são de crescimento e de aperfeiçoamento espiritual?
Corão ou Alcorão? Lemos algures que o prefixo "al" é um artigo equivalente ao "o": O Corão. O volume que temos em mãos vem intitulado "Tradução do Sentido do Nobre Alcorão Para a Língua Portuguesa". Manteremos a alternativa "Alcorão", portanto. A mesma opção faremos, nesta coluna, em relação ao nome do profeta — Muhammad em vez de Maomé. Quanto ao fiel do Islã, empregaremos o termo "muçulmano", mais difundido que "moslime".
Obtivemos gratuitamente nosso exemplar junto à Câmara de Comércio Árabe-Brasileira. Capa dura, papel fino mas de boa qualidade, impressão perfeita. A leitura avança da direita para a esquerda, abrindo-se o livro ao contrário do que estamos acostumados. A edição é bilíngue, cada página contendo os versículos em árabe — na escrita árabe - e em português. Sendo o texto considerado registro da palavra divina, entendemos que "traduzir o Alcorão" seria interferir no trabalho de Allah. Para evitar isto é acreditamos ter sido feita a escolha pela "tradução do sentido". O tradutor é Helmi Nasr, professor de estudos árabes e islâmicos da Universidade de São Paulo, cujas notas são de grande valia para a leitura que fazemos. A impressão foi feita no complexo do Rei Fahd.
Quem se dispuser a ler o Alcorão com espírito desprevenido, poderá deparar-se com gratas surpresas. O leitor alguma vez imaginaria encontrar a expressa recomendação de convivência pacífica entre árabes, judeus e cristãos? Que não importa o livro que siga, si a Torá, o Alcorão (ou O Livro, como também é referido), ou os Evangelhos, desde que o fiel creia em Deus (ou Allah, ou Iaveh) e possa apresentar boas obras diante d'Ele? Que a mulher deve ser tratada com o respeito, evitando-se lhe o sofrimento? Pois é... Não temos a apresentar ao leitor desta coluna a leitura completa do Alcorão. Não percorremos a totalidade de suas páginas, da primeira à última sura. Não se lê a Bíblia, nem o Bahavad Gita, nem O livro dos espíritos, nem o Livro de Mórmon para escrever uma coluna. O que encontramos, contudo, já é suficiente para contestar o senso comum e as mistificações.
Além disso, a que se compararia a leitura de um indivíduo isolado do interior paulista no século XXI? Seria necessário ler o Alcorão com os libaneses e com os sírios, com os afegãos e com os iraquianos. Não poderíamos desprezar o Alcorão dos iranianos nem o dos Emirados Árabes, o Alcorão dos tunisianos e dos egípcios, dos sudaneses e dos muçulmanos chineses. Uma é a leitura do imane que desenvolveu em alto grau seu espírito poético, filosófico e moral. Outra é a leitura transmitida pelo batedor dos líderes terroristas - homens corajosos que se comunicam apenas por vídeos após as tragédias que provocam - a jovens que muitas vezes procuravam apenas um sentido, um eixo, para suas conturbadas existências. Um é o Alcorão do velho sábio, que fecha os olhos e cobre-os com as mãos ao saber de mais um ato de violência usando sua Fé como desculpa. Até o espírita pode tomar o Alcorão e entusiasmar-se: "E não digais dos que estão mortos no caminho de Allah: 'Eles estão mortos'. Ao contrário, estão vivos, mas vós não percebeis" (Sura 2, versículo 154).
Revelado os homens por meio de Muhammad, o Alcorão deve ser visto como um guia para a reunião, a religação entre criatura e Criador. Fica claro que cada um responderá pelos seus próprios atos, afastada assim a própria ideia do pecado original, segundo a qual, de acordo com as tradições cristãs mais literais, o homem responderia pelos erros de Adão, seu antepassado mais remoto. Segundo o teor que podemos extrair do Alcorão, o homem que se desvia de seu caminho pode encontrar neste livro a orientação para o reencontro com Deus. Cada sura ou capítulo seria um degrau nesta escada - e são 114 deles. Podemos constatar este entendimento na sura da abertura, em que se pede que o fiel seja guiado, e na última delas, em que o fiel menciona seu refúgio no Senhor. Os sussurros divinos não são dirigidos ao ouvido do crente, mas ao peito. Si hoje o coração parece ser o símbolo universal da sede dos sentimentos, não é difícil encontrar tradições perante as quais ele simboliza ou simbolizava a sede da inteligência.
O Alcorão é também um código jurídico. Traz disposições acerca do divórcio, do testamento, da partilha de bens. Não autoriza a iniciativa violenta, assegurando que "por certo, Allah não ama os agressores". Por outro lado, acolhe a lei de talião em sua segunda sura, versículo 178: "Ó vós que credes! É-vos prescrito o talião para o homicídio...". Esta a margem do lago. Nos versículos seguintes o Alcorão demonstra clara preferência ao ressarcimento em vez do talião, e afirma adotá-lo para que o seguidor tenha noção das consequências do ato criminoso e, com isto, encontre uma oportunidade de evitar o mal. Indo um pouco mais ao fundo, notamos no correr da leitura que o texto muitas vezes responde a questões jurídicas, morais e sociais específicas dos seguidores. Há uma coerência interna perceptível após atento contato: (I) não agredir; (II) defender-se quando atacado; (III) defender-se na mesma medida. Neste ponto, contudo, encontramos comando mais explícito do que imaginaríamos: "E matai-os onde quer que os acheis, e fazei-os sair de onde quer que vos façam sair". Este versículo, o de número 191 da sura 2, responde aos escrúpulos dos fiéis quanto à autorização de defenderem-se ou não caso atacados em lugares santos, ainda que desta defesa decorresse a morte.
***
"Se ele escreveu boas coisas, aproveitai-as; se fez mal, é uma questão de consciência que a ele diz respeito". (Allan Kardec)
"A literatura moderna não deve continuar sendo outro sintoma da neurose de massa atual. Ela pode muito bem contribuir para a terapia". (Viktor Frankl)
A escolha do tema e início da redação da presente coluna deu-se antes do episódio francês envolvendo a publicação de uma charge e a sangrenta reação promovida por supostos fiéis islâmicos. Solidarizamo-nos com os familiares e amigos dos jornalistas e policiais que pereceram. Os detonadores dos tiros finalizadores da encarnação dos jornalistas do Charlie Hebdo são meros criminosos. Escondam-se atrás da Torá, do Novo Testamento, do Alcorão, do Baghavad Gita ou qualquer outro texto, mas continuarão sendo apenas isto: criminosos comuns.
Mesmo a pecha de "fundamentalistas" é equivocada. Fundamento algum de Fé autoriza ou incita à carnificina e, no caso específico, os culpados não devem ter aprendido que "Allah é com os piedosos" (sura 2, versículo 194). Por obra de falsos fiéis, o Islã acaba sendo um inimigo abstrato, contra o qual se protesta também em abstrato. Não se discute mais em torno de textos ou dados históricos e, pelo visto, nem se almeja qualquer aprofundamento. Fragmentos questionáveis de informações, leituras dirigidas do Alcorão e experiências pessoais generalizadas é tudo o que parece embasar as atitudes destes extremistas — termo que também parece de errônea aplicação, pois extremo de Fé ainda é Fé, não chacina.
Não podemos deixar de assinalar, porém, a imprudência de se tratar levianamente tal assunto em época beligerante, durante a qual a Ignorância recebe culto. A Imprensa é livre e assim deve ser mantida. Não é isto que estamos questionando. Sempre comungaremos com Voltaire: "não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizê-la". Porém, acrescentamos, que tens a dizer? Qual cartunista brasileiro, em nome da Liberdade de Imprensa, subiria um morro, fundaria um jornal e passaria a publicar charges sobre traficantes, os terroristas nacionais dirigentes do segundo Estado?
Liberdade, por sua vez, implica numa relação necessária com a Responsabilidade. Segundo o dicionário Houaiss, responsabilidade é o "dever ou capacidade de responder pelos atos próprios ou de outros (...) qualidade de se poder atribuir a alguém ou a algo a causa de um fato, situação, etc.". Todavia, a este significado corrente queremos acrescentar o de cunho filosófico com o qual Viktor Frankl fundamenta seu pensamento. Segundo ele, responsabilidade é a capacidade humana de dar respostas — do latim responsa - às situações que a existência apresenta. Constatada na França a onda de transtornos, incidentes e polêmicas em torno do fato da imigração, a liberdade de expressão e de publicação permitiu que se veiculasse qual resposta a esta situação? "A resposta do Humor", pode-se responder num primeiro momento e receber algumas palmas e palavras de apoio, mas isto seria contentar-se em nadar no raso.
Bem lida a "charge-gatilho", digamos assim, verifica-se que ela não satiriza a pessoa de Muhammad, nem o Alcorão, e nem a religião islâmica. Não é de toda inocente, pois apresenta um indivíduo de trajes típicos sugerindo alguma violência até o final do mês. Dirigiu o humor a uma parcela específica da população e a agressão, de fato, acabou acontecendo. Quando criança, caso fizéssemos algo que nos desse mau retorno, o pai — conhecido como "Pimpolho" nas redes familiares — tinha sua resposta pronta: "Você podia passar sem esta". Poucos dos que saíram em defesa dos mortos lembraram de excluir o Muhammad, o Alcorão e o Islã de seus contra-ataques, e isto é provado quando se lê nos jornais menções ao "islamo-fascismo" ou ao "fascismo-islâmico". Certos indivíduos atingiram tal grau de fanatismo e de cegueira na defesa de superficialidades, que talvez o próprio profeta não saísse ileso caso retornasse a este plano, devido ao entrave que representaria à disseminação da loucura. O próprio Charlie Hebdo percebeu isto, conforme prova a charge que apresentamos com esta coluna. Muhammad apresenta-se ao terrorista, que o manda calar-se e chama-o "infiel". Dostoievsky discorreu sobre situação análoga no episódio do Grande Inquisidor constante de sua formidável obra Os irmãos Karamazov. É de lamentar que em época de vazio existencial disseminado, as mentalidades sejam orientadas a buscar no Alcorão o que ele não tem - incitação ao ódio e à agressão — e sejam disseminadas informações imprecisas ou parciais a respeito de seu rico conteúdo.
Ricardo de Mattos
Taubaté,
26/1/2015
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