COLUNAS
Sexta-feira,
20/3/2015
O gueto dos ricos
Marta Barcellos
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A cena é comum no Rio de Janeiro: grupos de estrangeiros, reunidos em grandes jipes com pintura camuflada - como se fossem adentrar a selva - circulam por morros e favelas para exibir aos turistas a "exótica" pobreza carioca. Dentro dos jipões, os gringos se sentem protegidos e podem usufruir da experiência de observar de perto um curioso gueto, ambiente fechado e inacessível de outra forma.
A palavra gueto tem origem nas cidades européias onde os judeus eram obrigados a residir em bairros separados, evidenciando a sua "diferença", e suposta inferioridade, em relação ao resto da população. Comparativamente, a classificação seria aplicável às comunidades pobres do Rio, empurradas morro acima pela especulação imobiliária e pela falta de planejamento de bairros populares na cidade. Deu no que deu: samba, carnaval, tráfico de drogas, péssimas condições de vida, filmes famosos como Cidade de Deus. .
Imagino, porém, que nos últimos anos alguns turistas começaram a ficar decepcionados com o passeio. Urbanizada e com Mc Donalds na subida, a favela e seus moradores já não devem provocar o mesmo friozinho na barriga ansiado pelos turistas aventureiros. .
Já ao contrário, a visita tem potencial para muitas emoções e estranhamentos. .
Isso mesmo. Ao contrário. Imagine este pobre, que já não é tão pobre, entrando em um "gueto" de ricos, igualmente sem ser convidado: um condomínio de luxo no Rio ou o bairro parisiense de Champs-Elysées. Imagine-o com o mesmo olhar curioso, talvez até uma visão sociológica e antropológica possibilitada pelo maior acesso à educação, e sem a intimidação de uma minoria diante do poder vigente. Imagine que eles, os pobres não tão pobres, passaram a questionar o poder majoritário dos ricos. "Queremos entrar aí e observar como vivem", eles diriam. "Fazer algumas anotações para uma pesquisa que estamos realizando, ou quem sabe um documentário para mostrarmos na nossa comunidade." .
A primeira situação - jovens da periferia tentando fazer um filme em um condomínio de luxo no Rio - eu li na ficção, no engenhoso conto "Solar dos príncipes", de Marcelino Freire, parte do livro Contos negreiros. Em uma narrativa cheia de sutilezas ("Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio", começa o texto) e pontos de vista intercalados (os jovens do Morro do Pavão que querem filmar o documentário, o porteiro, os moradores do prédio), a inversão de papéis acaba por satirizar a situação que seria considerada mais "verossímil": a exploração da miséria alheia por engomadinhos de prancheta ou câmera na mão. .
Mas se o conto de Marcelino parecer ao leitor inverossímil (a ficção não precisa necessariamente parecer verossímil, diga-se de passagem), eis que a inversão acontece na "realidade", na segunda situação à qual me referi acima. Ela aconteceu no "gueto" de Champs-Elysées: jovens da periferia de Paris, estudantes de primeiro ano de faculdade cursando metodologia da investigação sociológica, transformaram os ricos e seus estranhos rituais de socialização e consumo em objeto de pesquisa. .
Como no conto de Marcelino, "entrar" não foi fácil. Diante da esperada hostilidade para responder questionários, eles evitaram bater na porta dos moradores e concentraram suas enquetes e observações em butiques, hotéis cinco estrelas, bares e cafés do bairro. Como mostrou reportagem do correspondente Fernando Eichenberg, foram tratados com desprezo por vendedores, garçons e vigilantes, mas prosseguiram em sua metodologia e concluíram: gueto, mesmo, em Paris, é um bairro de ricos tão ricos. Pelo modo de vida tão específico, pela densidade de sua sociabilidade, pelas escolas, clubes e rituais comuns, a consciência de classe é mais aguda do que em outras classes sociais. .
Os estudantes, por exemplo, se surpreenderam com a observação de práticas sexistas, algo que se considera típico da periferia. Em vários círculos e clubes privados masculinos, mulheres não são aceitas, ou não podem participar de votações. Notaram também a diferença de tratamento em relação ao véu islâmico: enquanto na periferia ele simboliza hoje um conflito entre funcionários do Estado, principalmente nas escolas, e parte da população, nos Champs-Elysées mulheres de véu da Arábia Saudita e do Qatar são recebidas como clientes especiais nas lojas. .
"O oitavo distrito (Champs-Elysées) se constitui muito mais como um gueto do que Saint-Denis (a cidade dos estudantes)", afirmou Jordan Mongongnon, universitário de 23 anos que mora numa habitação popular e participou do estudo de campo."Saint-Denis está mais próxima da realidade geral da França." .
No Brasil, em geral os muito ricos são observados em suas excentricidades de duas formas: ou com indisfarçável admiração e deslumbramento, ou com um tom jocoso - mas, este, destinado apenas aos novos ricos. Somente em recentes iniciativas culturais nascidas nas periferias, este "olhar outro" (não o da mídia nem o da universidade dos ricos) começa a apontar o aspecto de gueto e "exotismo" dos muito ricos. .
Particularmente, mesmo sendo de classe média (e desta forma não conseguindo ter o mesmo afastamento dos moradores da favela), eu não consigo deixar de espantar com o gueto dos ricos. Um dia ainda subo no jipão, ou parto para a pesquisa sociológica, para mostrar quanto descalabro, num país ainda tão pobre. .
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
20/3/2015
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