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Quarta-feira,
10/6/2015
Zizitinho Foi Para o Céu
Marilia Mota Silva
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Era de se esperar, ele já estava velho, já quase não dançava, nem quando cantávamos ai ai ai ai, está chegando a hora, ou Trem das Onze, as preferidas dele. Não que fosse um grande dançarino, seu repertório era modesto: andava de lado, dois, três passinhos, ida e volta, ou mergulhava a cabeça e reerguia depressa, o pescocinho obliquo, seguindo o ritmo, as garras firmes no poleiro.
Não era muito falador mas se comunicava: Batia o bico na treliça da gaiola e fazia um escarcéu danado quando alguém chegava em casa e não ia falar com ele. Em dias mais rebeldes, jogava sementes no chão, ou fingia indiferença, camuflado no seu cobertorzinho de pelúcia verde-mato. Solteirão, ranzinza, afetuoso, apreciador de música e de festa, tinha nascido em cativeiro e o mais longe que ousava, com a gaiola aberta, era o ombro ou a cabeça de alguém próximo. Ou o chão, o que era um perigo, porque seria fácil pisar inadvertidamente naquele feixezinho de penas verdes.
Um dia, no café da manhã, Theo, sete anos, foi levar um pedaço de fruta para ele e voltou dizendo que Zizitinho estava dormindo numa posição esquisita: no piso da gaiola, as perninhas pra cima. Foi uma correria, uma choradeira!
Seguiu-se o inevitável, os rituais do enterro, a caixa de sapato enfeitada com mensagens e desenhos das crianças, Zizitinho aconchegado na pelúcia verde, ao lado, seu espelho, seus brinquedos; a cova esperando ao pé da macieira.
Mas o caçula dos irmãos, inconsolável, tentava interromper o ritual estranho:
- Quedê o Zizitinho? - perguntava, tocando o montinho frio de penas. - Onde ele foi?
Onde foi a vida que existia nele? A pergunta que com todo o avanço da ciência não sabemos responder.
- Zizitinho foi para o céu, - disse o pai.
A mãe e os irmãos vieram em seu socorro: - Ele está muito feliz, foi encontrar a família dele! E, aos poucos, surgiu um céu em tons de azul e verde, com árvores, crianças, água de riacho e música, naturalmente.
Como viver sem mitos? Mesmo que um dia todas religiões e crenças fossem abolidas pelo bem da humanidade, eles renasceriam cada vez que nascesse uma criança.
E não seria apenas porque precisamos de criar histórias para responder às perguntas que não tem resposta. É porque que o sublime faz parte de nós, a intuição da beleza, da harmonia.
Nem o mais tranquilo dos ateus está imune à transcendência, nem que seja sob a forma de pensamento mágico. Nietzsche, que famosamente declarou a morte de Deus e influenciou meio mundo com sua filosofia, escreveu a sua amiga Malwida von Meysenbug, em 1877: Como vim parar em Lugano? Realmente eu não queria vir para cá, mas é onde estou. Quando eu cruzava a fronteira da Suiça, debaixo de uma tempestade, caiu um único raio seguido de um forte trovão. Tomei isso como um bom presságio.
Não há como negar: a magia, os deuses nos habitam. Mesmo que obscuramente, ouvimos em nós, às vezes, um murmúrio de oração, um senso íntimo de deslumbramento, de devoção a um todo que nos acolhe e dá sentido, não importa o nome que lhe damos, Tupã, Zeus, natureza, amor divino. Faz parte de nossos genes, tanto quanto nossas misérias.
No entanto, temos negado esse nosso lado há muito tempo. As ideologias que dominaram o século passado e ainda nos dominam, o consumismo, o materialismo, com liberdade ou sob opressão totalitária, deixam à míngua nossas necessidades e recursos espirituais.
E onde isso nos trouxe? À banalidade, ao vazio, ao aumento do consumo de drogas legais e ilegais, ao aumento da violência. Nossos valores hoje são a ganância, o egoísmo, a desonestidade, a mentira sistemática, o enriquecimento ilícito, a exploração dos que trabalham em benefício dos que se locupletam, a perda de confiança nas instituições, a truculência como norma social.Todos os sistemas de governo e organização social dão sinais de esgotamento.
É um momento crítico esse que atravessamos, e por isso mesmo, um momento carregado de promessas, de energia transformadora; fértil para o surgimento de uma nova filosofia e novas lideranças.
Marilia Mota Silva
Arlington,VA,
10/6/2015
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