COLUNAS
Sexta-feira,
26/6/2015
Para que serve a poesia?
Ana Elisa Ribeiro
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A pergunta não se cala, assim como o texto não silencia nunca. Em muitas ocasiões, a pergunta surge, ora com ar de curiosidade mesmo, ora com jeito de desafio. Quem disse que pergunta é só pergunta? Geralmente, não é. Deviam ensinar, desde a escolinha, que interrogação não sinaliza só questionamento. Pergunta também serve para provocar, para desestabilizar e para sugerir. Até para ofender. Pergunta redimensiona, alerta e contém. Pergunta rejunta. Pergunta separa. Pergunta perturba. O que quer quem pergunta? É o que devemos perguntar. E quem pergunta para que serve a poesia? O que quer? Depende.
Um escritor novato esteve às voltas com a dificuldade de publicar. Anterior a isso é a dificuldade de escrever. Mas de desafio também é feita a literatura, desde o começo. O escritor novato, então, sente um certo desânimo e passa a se perguntar sobre a serventia das coisas. Que lógica é essa? É que há uns elementos no mundo que já nascem com essa resposta na ponta da língua. Para que serve o pente? Para pentear os cabelos, se você os tiver, diria o careca. Para que serve a luva? Para proteger as mãos. Do frio, diria o esquimó; dos cortes, diria o mecânico; do asfalto, diria o motoqueiro. Para que serve a chave de fenda? Para atarrachar e desatarrachar parafusos, mas apenas os que têm na cabeça uma fenda. Há outros para outras chaves, diria o especialista. E aí vem minha avó dizer que usou chave de fenda para abrir tampa de vidro de azeitona. A empregada disse que fez uso da chave para desentupir um buraco ou para limpar uma greta. Vai ficando difícil dizer, ao certo, para que serve uma coisa qualquer.
Para que serve a poesia?, pergunta o escritor novato. Eu poderia, risonhamente, responder a ele, com jeito incentivador, que "para nos dar trabalho". E não me referiria exatamente ao trabalho como ocupação, como labor pelo qual eu deveria receber dinheiro ou marcar ponto, mas ao trabalho no sentido do custoso, da peleja, do esforço. Uma espécie de nadar contra a corrente, que é cada vez mais viciada.
Vem o gestor de cultura e pergunta para que serve a poesia? Ele provavelmente, se for um pouco inteligente, não perguntará isso de qualquer jeito, a qualquer um. Talvez prefira o recinto fechado e o secretário puxa-saco. Vão dizer: a poesia não serve para nada, meu caro colega. Mas é preciso mostrar aquele verniz. Poesia é verniz, e dos bons. Faz brilho em quem parece sabê-la. Poesia não abre lata e nem limpa pia. Poesia não penteia, não desparafusa e não guarda presunto. Poesia não esquenta água nem esfria cerveja. Poesia não liga e desliga.
Mas a garota inteligente vai dizer assim aos queridos colegas que, sim, é preciso saber metáfora para entender um pouco melhor o que pode fazer a poesia. Poesia acende e esquenta, ela dirá a ele, olhando-o nos olhos. Sabe por que um país se apaga do mapa? Porque seus cidadãos não vêm luz em nada. Quando eles usam a inteligência, pode ser que fiquem mais possantes. Mas não usarão enquanto não puderem se entender e se expressar. A poesia alerta, incendeia, clareia. Se alguém é capaz do espanto, gostará da poesia de um e de outro. A poesia perturba. Não sei se é uma experiência comum, mas é forte. O leitor lê um poema e sente, de verdade, um mal-estar. Um aperto, um susto, um descompasso. E faz perguntas, daquelas de desestabilizar: será? Mas será? Mas é isso? E quando o leitor começa a se ligar? É isto! É isto! E consegue compreender que há uma coisa chamada identificação.
A poesia pode tratar do mundo. Mas não desse mundo das chaves e dos pentes - embora também o possa. Conheço poeta que fala de mesa, de cadeira e de lápis. No entanto, nessa poesia, as coisas não são só elas e nem apenas o que parecem. As coisas extrapolam olhares restritos. A poesia serve também para isso. A poesia ressignifica o que parecia estar quieto ali, sem grandes afetações, por uma vida inteira.
O que seria o amor, sem a descrição poética? O amor serve para quê? Diríamos, talvez, em uníssono: "para nos dar trabalho". Pode ser. Às vezes, não é. Para que servem os filhos? Depende. Para nos arrimar, para trazer chinelo, para resolver nossas vidas mal resolvidas, para dar preocupação, para dar beijo. Há coisas que se formam de uma complexidade de serventias tão, mas tão grande, que nós preferimos não questioná-las.
Para que serve a literatura? Para nada. Se não serve para nada, por que a perseguem? Por que ela precisa ser limpinha e corretinha para adentrar a escola? Por que ela precisa ser inocente para ser comprada pelos editais públicos? Por que ela precisa ser ecológica para ser tratada em aula? Por que ela precisa ser evitada? Por que ela precisa ser regulada, em termos de idade, temas, registros de linguagem? Deve ser porque ela não serve para nada.
Eu fiquei brava, dia desses, porque a escola indicou um livro no "projeto literário". Quando li, junto com meu filho, fui torcendo o nariz para aqueles ensinamentos sobre efeito estufa. Era tudo, servia para muita coisa, sem dúvida, mas não era literatura. Não era arte, não era nada. Que fosse para o projeto ecológico, para o projeto de ciências, para outra coisa. Não podia estar no projeto literário. Assim, meu filho não saberá nunca o que é literatura e como ela é perturbadora. Prefiro, quando for o caso, que ele leia Ignácio de Loyola Brandão ou outro que possa tratar das mazelas do mundo por meio da arte, que serve, podemos dizer, para acender, aquecer e perturbar.
Uma vez, na escola, li um poema que me bateu. Chocou-me ao ponto de eu paralisar a leitura e não conseguir retomá-la, por um tempo. O poema me varreu do meu lugar, me sugou, me empurrou - para frente. Com algumas poucas palavras, o poema me derrubou. Mas derrubou e me deu as mãos, em seguida. Eu me levantei mais forte. Não tinha palavrão, não falava de morte, não era um poema assassino nem prostituto. Não precisava ser, mas poderia ter sido. Era um poema bom, com o qual eu me identificava, naquele momento. Era um poema que me dizia coisas que ninguém diria. Porque muitas coisas importantes e interessantes estão escritas e não serão ditas. A poesia me demoveu ou me convenceu. Pode ser que eu use um poema para conquistar, para ofender e para ensinar. Pode ser que não. É que a poesia é palavra. E a palavra, bom, parece que serve para tudo neste mundo.
Ana Elisa Ribeiro
Belo Horizonte,
26/6/2015
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