Confiem em si mesmos, enxerguem a realidade e firmem parcerias: meu conselho para estudantes das ciências humanas em busca de realização profissional. [1]
A ordem natural das coisas é vocês, jovens, abrirem novas frentes de atividades a partir de nossos ensinamentos, do que nós transmitimos a vocês de já velho, de já estabelecido. Vocês devem nos consultar sobre idéias e conceitos, desbravando um novo universo de atividades e práticas! O convite de uma organização estudantil para falar sobre uma associação com a qual eu colaboro que busca, com o uso de novas tecnologias, maior acesso ao conhecimento e transparência nas coisas públicas, contém uma inversão. Nessa associação, eu é que aprendo com os jovens sobre novas possibilidades de atuação, e apenas colaboro com reflexões que fazem parte de meu ofício como pesquisadora.
Eu queria portanto estar aqui aprendendo com vocês! Mas por que isso não ocorre? Porque nós não estamos dando os instrumentos para vocês desbravarem o mundo, e é isso que vim fazer aqui. Quero colocar as coisas no sentido certo, reverter o sentido da pergunta, chamar para nós a responsabilidade de apresentar o mundo e devolver a vocês a oportunidade de desbravá-lo. Vocês são jovens, inteligentes, atinados e vão abraçar as oportunidades que surjam, mesmo diante da longa crise econômica que se inicia nesse ano. Não tenho dúvida disso. Mas vão precisar de olhos abertos para enxergar oportunidades e é nisso que posso ajudar vocês. Abram os olhos.
Olhem a realidade. Olhem-se. Falem e escutem.
Essa é a principal mensagem de hoje. Olhem a si e ao que existe em volta, e se comuniquem com essa realidade através da linguagem, nosso instrumento tão poderoso! Quem seguir esses mandamentos vai conseguir se firmar profissionalmente e quem sabe até ajudar os colegas, abrindo para eles também portas.
Nós temos dito a vocês que o indivíduo é impotente na sociedade contemporânea. Que existem esquemas mil que o transformam numa peça de engrenagem. Esqueçam, ao menos pela duração dessa fala, essa tolice. Vejam-se como indivíduos capazes, autônomos, donos de iniciativa e confiantes. Lembrem do que sabiam fazer bem quando chegaram à faculdade e do que aprenderam a fazer nos anos universitários, incluindo as coisas que fazem fora daqui, desde organizar festas e cozinhar até ensinar os colegas alguma matéria ou jogar games no computador. Busquem o melhor de vocês, vendo graça nas desanimadas hienas Hardy que pululam nos campi. Identifiquem o que gostariam de saber fazer, desde línguas até rudimentos de administração, e vão atrás desse conhecimento, aproveitando os recursos da universidade, que não são poucos!
Também temos dito a vocês que a "mídia manipula". Ora, é através dos meios de comunicação que nos inteiramos do que acontece no mundo à nossa volta. Não há meio mais eficiente de tapar-lhes os olhos do que deslegitimar o principal visor que vocês têm para ver o mundo. Esqueçam essa segunda importante tolice. Leiam os jornais e revistas que puderem, em português ou em inglês, ajudando-se mutuamente caso tenham dificuldade com línguas estrangeiras. Acessem blogs e sigam pessoas interessantes na internet. Usem toda a informação disponível hoje globalmente para listar os assuntos que preocupam os cidadãos no mundo todo. Meio ambiente? Representação política? Dramas urbanos? Refugiados? Faça a sua lista de questões prementes e, dentre elas, busque uma na qual você pode colaborar.
Estejam também aberto às soluções que andam circulando por aí. Economia compartilhada, transparência governamental, jornalismo cidadão, cidades inteligentes, hortas urbanas - intere-se de tudo para poder encontrar o seu nicho. Com a crise, a capacidade de contratação do setor público será muito baixa na próxima década, quando você estará se firmando profissionalmente, e as transferências para o terceiro setor também serão reduzidas e estarão sob forte escrutínio; daí a importância de identificar nichos de ação relevantes. Para se aprimorar nesses primeiros anos de formado e aguardar a crise arrefecer, busquem também oportunidades de estudo, no Brasil ou no exterior, incluindo os Estados Unidos e seus aliados democráticos, cuja demonização justifica o monolinguismo acadêmico, sem outra utilidade para você ou para o país.
Também temos dito a vocês que contratos entre as pessoas são ilegítimos. Que o acordo entre um empregador e um empregado é um ato de exploração, e não um negócio entre duas pessoas autônomas. Que uma sociedade fincada em contratos é no fundo uma luta entre grupos antagônicos que querem se destruir. Esqueçam essa terceira importante tolice. Leiam sobre a heróica emergência de uma sociedade baseada em leis. Reconheçam o fato de que na vida cotidiana somos regidos por contratos, o que dá estabilidade para as relações humanas, permitindo a inovação, e que há sanções para quem os descumpre. Lembrem que formamos comunidades não em torno de dogmas, mas sim através da associação de pessoas livres com objetivos claros e comuns.
Na vida profissional, vocês estabelecerão contratos, seja com o setor público, com o setor privado voltado para o lucro ou não, ou mesmo com colegas e clientes, em novos empreendimentos. Estejam abertos, com confiança, para estabelecer parcerias, inclusive para começar com colegas atividades novas. Há jovens que vêm me perguntar se é correto obter lucro através de inovação. Sim, é correto obter lucro através do próprio trabalho, em inovação ou em setores já estabelecidos. Questionar a própria idéia de contrato justifica as mais gritantes distorções na distribuição da riqueza nacional, sem os aprimorar. Lembrem então que vocês têm autonomia para começar o negócio que quiserem! O fato de obterem lucro em alguma atividade não exclui seu caráter benéfico. E vice-versa, o fato de serem funcionários do Estado não garante o caráter benéfico da sua atividade. O respeito aos contratos é um importante elemento de sua realização profissional: acredite em si, nos outros, e nos acordos que vocês fixarem livremente! Acredite, enfim, na colaboração humana.
Com esses três mandamentos - confiem em vocês, observem a realidade e firmem parcerias - vocês estarão já muito encaminhados profissionalmente. Nos anos que faltam de estudos até se formarem, busquem atividades que os ajudem nesses três desafios: atividades que permitam que vocês explorem o próprio potencial, estudos que ajudem vocês a compreender os desafios reais que se colocam à sociedade contemporânea e experiências que testem a capacidade de colaboração de vocês na busca de objetivos comuns. Na hora de traçar seus objetivos acadêmicos e desenhar seu trabalho de conclusão, lembrem-se portanto que a pesquisa serve para identificar problemas reais e buscar soluções benéficas para todos e não para justificar o status quo ou criar bodes expiatórios. Portanto, deixem de lado problemas inventados que legitimam concepções de mundo autoritárias, mas que só existem na cabeça de ideólogos ou devido à promoção do Estado patrimonial. E que o objetivo do ensino superior é ajudar vocês a se constituírem como cidadãos livres e produtivos e não justificar uma disciplina ou um curso ou uma instituição ou uma categoria profissional.
Talvez nesse ponto alguns de vocês estejam se perguntando: "Mas eu aprendi ao contrário do que você está dizendo. Que faço com esse aprendizado?" Minha sugestão é simplesmente deixar de lado (e talvez mais tarde usar a experiência como material de observação participativa em estudos sobre patrimonialismo ou religião). Não será a primeira vez que alguém deixa para trás idéias sem serventia que lhes foram passadas, e certamente não será essa a vez mais custosa. Milhares de pessoas antes de vocês já fizeram isso, muitas vezes depois de terem pago preços extorsivos. Discursos ideológicos não abrem portas para o indivíduo nem para nações fundadas sobre eles. Mas tem um poder de convencimento muito alto, portanto não se sintam culpados se caíram nessa farsa. Leiam "Que é isso, companheiro?" de Fernando Gabeira, ou outro dos tantos livros sobre o assunto.
O Brasil é um país abençoado, com um povo com enorme capacidade de trabalho e alegria de viver. Vocês são jovens, têm à sua volta outros jovens com iniciativa e enormes oportunidades à frente. O primeiro passo é se livrar das viseiras que a ideologia coloca sobre os olhos de vocês, para poder enxergar essas oportunidades, firmar-se profissionalmente e contribuir para a sociedade com as realizações de vocês. Essa longa crise na qual entramos nesse ano deve ser vista como um trampolim para buscar o que realmente importa para vocês, para as pessoas à sua volta e para a nação como um todo.
Eu acredito em vocês e é com essa fé que entro todos os dias na sala de aula, buscando transformar inquietações em questões de pesquisa, dúvidas em conhecimento. Entrei aqui nesta sala com o intuito de transformar a busca de norte profissional em abertura para atividades novas, serviços novos, modos de organização social novos dos quais eu mesma, como cidadã, quero me beneficiar no dia de amanhã!
1 - Palestra em 15 de outubro de 2015 na Unesp de Marília, no evento "Cientistas Sociais: Rconhecendo os Campos de Atuação" organizado pela FATO - Empresa Júnior de Ciências Sociais.