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Terça-feira,
10/11/2015
Ao Abrigo, poemas de Ronald Polito
Jardel Dias Cavalcanti
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Parafraseando T. W. Adorno, as únicas obras de arte autênticas produzidas hoje são aquelas que, na sua organização interna, medem a si mesmas pela mais complexa experiência da negatividade.
É o caso do livro de poemas Ao Abrigo, de Ronald Polito, publicado pela Editora Scriptum, de Belo Horizonte.
Essa negatividade da poesia de Polito não diz respeito apenas ao poder crítico, do qual deriva sua oposição à "vida ordinária" ou ao "mundo absurdo", mas ao fato de que parece desafiar a própria ideia de "poesia" (ninguém mais acredita realmente em "cultura", diria Adorno). O que acontece é que nos seus versos, a entranha da estrutura poética esfola-se a si mesma para não deixar viva qualquer ideia de "substância positiva" na linguagem.
A negatividade intrínseca da linguagem (e Polito aprecia Beckett), como alguém que quebra a própria perna para não continuar a se submeter ao desejo de andar, (similar ao verso "andar até conseguir não chegar", do poema "No verdadeiro caminho") é o aspecto absolutamente singular de sua poesia (se assim o podemos dizer), aquilo que a torna única e que resiste a qualquer apropriação em uma categoria maior, como uma forma genérica específica de poesia já praticada em algum lugar.
Para onde quer levar essa poesia, se quiséssemos pensar a poesia sartreanamente como um "ser em situação"? No caso, o poema "O situado" indica a paralisia: "Este lugar pode levar a este lugar". Não há, portanto, para onde andar se esta poesia é como uma revolta tempestade que apenas pode girar em torno de si mesma, produzindo os estragos internos que reforçam ainda mais a sua própria força auto aniquilante. É o que fica claro no poema "Além", onde "só aqui ocorre a morte da morte", e a possibilidade de sair em movimento, o "Éden à deriva", é nocauteada pela ideia de um adentro constante, uma espécie de "o dia para sempre".
A reprodução de uma obra plástica do autor, uma escultura em grafite denominada "Casa", se relaciona diretamente com o título do livro "Ao abrigo". A casa, tornada escultura, não tem as feições comuns de uma casa. Ela eleva-se, no formato dado pelo artista, numa perspectiva de acolhimento de apenas uma pessoa, e ainda em pé, em situação, talvez, desconfortável. Esse abrigo, frágil também pela sua constituição por levíssimos grafites, sem paredes, nem nada que a decore por dentro, talvez metaforize o próprio processo da poesia negativa de Polito.
Podemos pensar que a poesia, como essa casa, vai sendo construída sob a estrutura material de uma fragilidade constante, ou risco de desabar a cada minuto, sendo essa capacidade do artista em manter em pé essa fragilidade, essa insana construção ("um trampolim na escuridão"), a própria condição de sua poética.
No poema "Desaparição", por exemplo, a ideia de abrigo é colocada entre parênteses, um sinal gráfico como rede de proteção, como as paredes da casa de grafite, e ainda mais, a sentença é cortada por outro sinal, exigindo a separação entre o que existe e o lugar: "(aqui ainda existe/ o lugar)". A imagem torna-se ainda mais forte se acolhemos o verso de "Oferenda" que fala de uma "vida na ilha de uma ilha".
Não sabemos se esse abrigo é um bunker- mais como rede de proteção que lugar confortável -, mas a ideia de estar "entre", como se dentro de uma coisa, é que leva ao "tempo que não passa mais/ todas as coisas iguais/ cobrindo o corpo com alma/ como uma droga que acalma".
A negatividade constante dos poemas, seu >modus operandi de criar impossibilidades, pode ser resumido no poema "No verdadeiro caminho", que reproduzo abaixo:
Voar sem trilhos.
Apalpar através dos véus, dos vidros.
Prender-se à superfície do mundo
Desprovido de dedos, dentes, cabelos.
Andar até conseguir não chegar.
Construir um abrigo em labirinto.
Insistir no método difícil da ignorância.
Na poesia de Polito há dois elementos sempre presentes, o espaço e o corpo: o primeiro, é o lugar onde as ações se projetam, sempre num movimento incerto, interrompido ou fadado ao bloqueio; o segundo, a espécie humano-animal enclausurado em seus anseios, também interrompidos.
Um poema em prosa do livro, como "Ponto final", resume a ideia: "Qualquer movimento que fizesse, e o horizonte distante adaptava-se, indiferente, ao seu novo ponto de partida." A impossibilidade de um além ou de uma alternativa, apesar do movimento, sempre faz o horizonte ser o mesmo, numa espécie de círculo vicioso da repetição, "retorno do reprimido" ou "eterno retorno". A capa do livro, belíssimo projeto gráfico de Luciana Inhan, representa bem esse círculo dentro do círculo. Também em "O alvo móvel", a ação parece parada: "Por mais que caminhasse, estava sempre no centro absoluto do círculo do horizonte à sua volta." A insistência nessa impossibilidade da ação, aparece também em "O que se atinge": "E, uma vez você,/ movendo-se,/ também já era outro/ o horizonte."
Um poema que chama a atenção, se pensarmos na ideia de alguma experiência possível dentro do abrigo, é o amor. Mas, numa poesia da negatividade, mesmo o amor se transfigura naquilo que dá título ao poema: "Desengano", do qual reproduzo alguns versos: "Tua pele nada pode contra/ esta parede de pedra. // Voltar ao pó, que saída,/ ou antes, que cilada.// O amor, se for, vai passar, bem depois."
De dentro desse bunker-abrigo surge a ideia de um rumo de mão dupla, mas ao contrário de ser uma saída rumo a dois espaços, para a poesia de Polito o horizonte é o abismo ou o abismo é seu horizonte. O poema denominado "Mão dupla" encarna essa situação:
MÃO DUPLA
Horizonte-abismo
daqui nada é distinto
nem se emenda
daqui tudo é miúdo
não se tem a ideia de muito
nenhuma trilha ou asa
ou pausa
acordar já parece grande
o bastante
no peito uma pedra crescendo para
si
há certos animais que
sangram mais
na hora da agonia da alegria
mãos que antes são
garras que ainda
são facas
cédulas xifópagas
páginas diárias de despedaçar
luas e luas sem luz
aqui nesta paragem ou pane
para cada cédula
que dana
então
de onde
abismo-horizonte.
Se o poeta resiste a tanto negativismo e por um instante cede à ideia da paz, ele sabe, no entanto, que estará ainda sim, como no poema "O que passa", no meio do redemoinho:
O QUE PASSA
Sozinho.
A caminho.
Nada nas margens.
Nem mesmo miragens.
E tudo é branco, adiante.
Não há pássaro, que cante.
Para trás ficou todo o burburinho.
Vai em paz no meio do redemoinho.
No poema "Atlas" (personagem condenado por Zeus a sustentar os céus para sempre sobre os ombros), apesar do esforço descrito "Assim, a mão/ fechada com força,/ retesando os tendões/ do antebraço que/ à flor da pele/ quase dançam ou/ vibram como/ corda", sobra-lhe também, um fragmento da beleza, "os pés/ brilhantes", metáfora final para a poesia.
Jardel Dias Cavalcanti
Londrina,
10/11/2015
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