COLUNAS
Quinta-feira,
19/11/2015
A grande luta das pessoas comuns
Guilherme Carvalhal
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Como é de amplo conhecimento, Minha Luta foi o livro escrito por Hitler durante seu período de cárcere, obra que repercutiria seu ideal nazista e seria um passo propagandístico em sua ascensão ao poder. Seu ideário execrável faz com que o termo ganhasse um olhar pejorativo, sempre associado ao que o líder da Alemanha pregou.
Essa é a estranheza inicial da obra Minha Luta, publicada pelo autor norueguês Karl Ove Knausgård em diversas partes. O título é obviamente provocador e foi desincentivado pelo editor, mas o escritor bateu o pé. Pelo menos, se Hitler queria colocar sua luta como um feito heroico de salvação de um povo, Knausgård se volta para uma atmosfera ao estilo romantista, em que esse grande feito não está na mãos de um herói, mas justamente nas pessoas comuns.
A primeira obra que compõe essa série é A Morte do Pai. Nesse livro, temos o próprio autor narrando sobre a difícil relação familiar provocada pelo pai alcoólatra. E quando me refiro a próprio autor, é ele mesmo, pois o livro é de fato uma narrativa autobiográfica bastante crua, com direito a brigas familiares e problemas judiciários por causa de fatos relatados.
O texto é o atual Knausgård relembrando sua adolescência agora sob o ar da maturidade, contando seus planos, feitos e frustrações tão típicos dessa idade, isso tudo cercado pela figura paterna. Assim sendo, é uma obra de idas e vindas pelo tempo, baseado pela memória apesar de algumas linearidades e não por fatos soltos. São as primeiras relações com as garotas na escola, as fugas para beber escondido e a tentativa de levar sua banda de rock adiante que vão formando esse período de sua vida.
Se pensarmos no cotidiano vulgar como tema da literatura, precisamos pensar um pouco na inserção desse dia a dia na literatura. Na linhagem história, a literatura sempre foi campo do heroico, dos grandes feitos envolvendo figuras mitológicas acima dos meros mortais, que enfrentavam gigantes, dragões, hidras e demais criaturas. Até mesmo as grandes tragédias envolviam nobres e criaturas superiores, como o drama de Medeia ou os textos de Shakespeare envolvendo a classe alta feudal.
Cervantes com Dom Quixote foi uma quebra nesse modelo. Ao invés de Lancelot ou Hércules, aqui temos um mero louco perambulando atrás de aventuras que sua mente insana criava. O espaço do heroico foi ocupado por uma pessoa comum, sem nada que a tornasse superior exceto suas próprias alucinações. O movimento romantista também foi um dos principais na introdução desse personagem cotidiano nas narrativas, como nas obras de Victor Hugo. Outros escritores como Zola e Dickens também desenvolveram seus personagens no popular.
O século XX foi pleno dessa ótica popular na literatura. Sem a figura do nobre a assolar, o conteúdo dos livros cada vez mais encontrou nas figuras do cotidiano sua matéria-prima, como Joyce em Ulisses ao criar a grande aventura da vida comum. Porém, se durante o século XX sobraram experimentações linguísticas, a literatura do século XXI está menos focada em inovações e mais preocupada com as histórias e com os relatos, além de um grande foco no cotidiano, algo presente no trabalho de autores como Frazen e de Ian McEwan.
O trabalho de Knausgård pode ser situado nesse meio, de uma literatura contemporânea, focada basicamente nas experiências comuns do dia a dia e altamente introspectiva. Aliás, o que mais chama a atenção é o nível de introspecção. O detalhamento de pequenos fatos é excessivo, envolvendo o leitor completamente com sua própria vida. Sua literatura é plenamente voltada à vida privada, arrastando o leitor para dentro dos quartos ou o acompanhando em caminhadas na neve durante o Natal.
Quando o autor decidiu pelo nome Minha Luta, ele quis remeter a uma luta pessoal. Não uma luta heroica, nem a tentativa de derrubar governos ou de impor uma ideologia suprema. A luta à qual Knausgård se refere é aquela que cada um enfrenta a cada novo dia, em um valor pessoal para cada um. A grande característica dele foi de conseguir leva a sua luta particular para os outros, apresentando os significados que cada evento tiveram em sua vida para os outros. Ele não apenas conta fatos; ele compartilha o significado de cada momento com o leitor, em uma explicação detalhada do que os seus relatos significaram. E esse é o grande valor de sua obra, por conseguir produzir um cenário realista e até corriqueiro, mas carregado de significados especiais que apenas cada indivíduo pode produzir.
Guilherme Carvalhal
Itaperuna,
19/11/2015
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