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COLUNAS
Quinta-feira,
26/11/2015
Os olhos brancos de Deus
Elisa Andrade Buzzo
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Por muitos anos passei por aquela calçada, beirando o colégio religioso e sua capela. Acompanhei a poda constante do jardim equilibrado, a troca das lajotas da calçada, a pintura sazonal do muro. Assim como a queda de grandes árvores e a espera pelo plantio de uma nova muda, o que nunca aconteceu. E até mesmo o embarque das crianças nas vans das tias no final da tarde, quando eu voltava para casa com outro uniforme. Hoje, trato de atravessar a rua, ainda que talvez seja inútil - o grande olho quem sabe me acompanha, em todos os meus passos, lentos ou rápidos.
Quem já não imaginou sua vida numa tela de cinema, com boa fotografia, roteiro perambulando pelas ruas brilhantes da cidade, acompanhando o escovar dos dentes e o amanhecer pessoal, com aspecto sutil de cinema nacional? Pois aquela calçada, se tivesse tido uma câmera instalada, teria acompanhado, registrado mesmo, meu crescimento, indo do colégio para a faculdade e de lá para o que mais se espera? Haveria um filme bruto, sem edição, com uma vida de passagem que eu mesma não sei, nem imagino, apesar de tê-la percorrido. As personagens principais de suas próprias histórias parecem desconhecer as implicações cruciais de seu enredo.
Agora que essa calçada já me é um pouco mais distante, verifico que recentemente uma câmara foi instalada no jardim milimétrico. A gravação dessa câmara de vigilância tem duração ininterrupta, sem cortes, baixa qualidade (tudo isso imagino), e, o mais importante, não tem a autorização dos atores envolvidos ao acaso de um giro no passeio público. A matemática da segurança privada me deixou desnorteada, a mim, que tanto prezo a liberdade de minhas escadas interiores, o abrir de minha porta apenas com meu girar de chaves. E que nada desse cinema íntimo fique fielmente registrado.
O esquema é digno de segurança papal. O totem prateado com a câmera de segurança se eleva caulificado da beira do jardim, por detrás do gradeado do portão, a uma altura quase divinal. Em seu cume, ostenta um grande olho branco giratório. Sua órbita gira para a esquerda, para a direita, para baixo, e quem sabe para cima preste contas de seus registros comezinhos. Mais do que uma câmera, é um instrumento cortante, um bisturi gigante, pronto a nos julgar por uma lei supostamente divina. Quem sabe eu tivesse ouvido desse robótico maquinário, destituído de cílios, um ruído corrosivo de metal. Mas as engrenagens ainda estão lisas e ágeis.
A vida geometrizada toma conta, sob a justificativa da violência, do pânico generalizado. Fico intimidada pela coerção daquele globo ocular esplêndido, com seu rude nervo eletrizado vigilando a paz do bairro, não por acaso cada vez menos bairro e mais elitizado. E penso, se Deus não toma conta propriamente daquela capela do colégio - onde além da câmera giratória em dias de missa estão seguranças engravatados -, o que é de nós, pobres mortais?
Elisa Andrade Buzzo
São Paulo,
26/11/2015
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