COLUNAS
Quinta-feira,
7/1/2016
Cinema de Conflito e Entretenimento
Guilherme Carvalhal
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O cinema nacional vem experimentando um excelente momento nos últimos anos. Seu nível de profissionalismo cresceu, a abordagem de temas se tornou mais vasta, os roteiros mais sofisticados e isso tem dado uma forte credibilidade às produções em termos de crítica (o que não necessariamente se converte em público).
Dentro de uma perspectiva da tradição do cinema brasileiro, uma das principais heranças é a contextualização das muitas dualidades sociais, tema constante nas películas lançadas. Os embates de Deus e o Diabo na Terra do Sol, a fé popular e a posição oficial da igreja em O Pagador de Promessas, as desigualdades sociais em Rio Quarenta Graus, a violência em Cidade de Deus; temos uma forte tradição em mostrar uma sociedade em contínuo conflito. Assalto ao Trem Pagador, Bye, Bye, Brasil, Toda Nudez Será Castigada, há uma extensa lista de obras que expõe um país complexo.
Outro viés da produção está em um cinema mais leve, menos preocupado com conflitos e focado em levar entretenimento ao telespectador. Nas pornochanchadas o objetivo era superlotar as salas através da sensualidade exposta - mesmo que em conflito com a censura da Ditadura Militar - até essa tática se tornar difusa através da abertura da televisão a obras com certas doses de sensualidade e de uma indústria pornográfica mais direta ao ponto. No âmbito da comédia, o país teve seu pontapé inicial com a Atlântida, que gerou alguns dos grandes nomes do humor nacional e em alguma escala tentou levar temas sérios para serem escrachados, como em O Homem do Sputnik.
Essa tradição de um cinema mais leve sempre esteve em consonância com a indústria norte-americana. Na década de 1980, com a consolidação de muitos ícones através da televisão, começaram a chover produções que tentavam trazer referências a obras estrangeiras, como das comédias adolescentes que abundaram na Sessão da Tarde. Atores, cantores e apresentadores de TV meteram suas caras em produções sem muito conteúdo tendo por objetivo apenas divertir o espectador. Esse modelo permanece atualmente, apesar de ser produzido em maior qualidade, sem deixar de em muitos casos ser um verdadeiro pastiche das comédias dos Estados Unidos.
Quando se fala em Que horas ela volta?, o filme de Anna Muylaert que tem recebido muitos comentários recentemente, podemos notar que é uma obra que se insere nessas duas vertentes. É um filme de conflitos, mostrando que somos uma sociedade segmentada onde os espaços de cada grupo social são bem definidos e que até para extrapolar essas fronteiras é preciso seguir alguma regra. Por outro lado, as doses de um cinema de entretenimento, que visa agradar ao espectador de maneira leve e com alguns momentos de bom humor e final feliz, se faz bastante presente.
A diretora Anna Muylaert mantem esse estilo com propriedade. No cult Durval Discos ela já consegue mesclar com boas doses o drama particular com doses de humor. E a proposta desse seu último filme é a mesma. Aqui, temos Regina Casé no papel de Val, empregada doméstica de uma família de classe média alta em São Paulo. Imigrante nordestina, ela deixou sua filha Jéssica aos cuidados de outras pessoas para ganhar a vida em outro estado, e parte do seu salário sempre destinou para que a jovem recebesse uma boa educação.
Val trabalha há anos na casa de Bárbara e Carlos, morando em um quartinho aos fundos. Tudo nessa casa é bem definido: ela serve a família na sala de jantar, mas não pode participar das refeições, pode consumir os produtos da geladeira sem tocar naqueles específicos da família. Mesmo sendo peça fundamental para o bom funcionamento da casa e da estrutura cotidiana, seu espaço é bem definido no meio deles.
A residência é marcada pela frieza nas relações, uma crítica relativamente corriqueira à classe alta, a de que a renda mais alta acaba transformando as relações humanas em algo mecânico. Bárbara e Carlos são um casal meramente burocrático. Ela se preocupa com sua carreira e sua aparência enquanto o marido - que possui uma herança e se dedica a cuidar de sua produção artística - fica deixado de escanteio, sendo que em seu lar quem possui voz de mando é a esposa. Já o filho Fabinho é o típico garoto mimado, que recebe tudo dos pais, menos afeto.
Nesse meio mecânico, Val funciona como o ponto de equilíbrio da casa. Ela é bem humorada em um local de regras rígidas e é quem oferece a Fabinho o carinho negado pela mãe. No começo do filme, quando ele ainda é criança e pergunto a Val "que horas ela volta?" querendo a mãe já se pode saber que é ela de fato o sustentáculo emocional do rapaz.
O abalo estrutural se dá quando Val recebe uma ligação de Jéssica afirmando que vai para São Paulo realizar o vestibular. Sem ver a filha há mais de 10 anos, a empregada toma um choque e pede aos patrões para que possa hospedá-la dentro de seu quarto de empregada, pedido que é prontamente aceito. O que não esperavam era que o comportamento de Jéssica destoasse tanto do da mãe. Se Val é submissa e obediente, Jéssica rompe as barreiras e não se envergonha de transitar pelos espaços. Ela pede para dormir no quarto de hóspedes, toma banho na piscina (onde Val em todo esse tempo nunca entrou), toma o sorvete que é exclusivo de Fabinho e ainda cai nas graças de Carlos, que procura na jovem uma paixão que não encontra na esposa.
Se Val é a personagem principal em quem toda a ação se centra, Jéssica é seu contraponto que abala a ordem estrutural. Se com sua graça atrai a atenção de Fabinho e Carlos, provoca a ira de Bárbara ao ver seu posto de mãe, esposa e dona de casa ameaçado, sensação jamais provocada por Val, essa sempre mantenedora da ordem. Tanto é que Val sempre tenta enquadrar sua filha dentro das regras estabelecidas, o que acaba gerando o rompimento entre as duas.
Pensar em Brasil remete ao conceito de cordialidade, algo que à primeira vista se define como uma simpatia natural, mas por trás esconde uma sociedade estratificada. Bárbara inicialmente aceita de bom grado a presença da moça, porém quando ela começa a se aproximar demais de seu marido e filho e usufrui de privilégios, ela imediatamente tenta cerceá-la, utilizando o argumento da propriedade privada, dizendo que a casa continua sendo dela.
Anna Muylaert consegue produzir um filme que, apesar de uma temática um tanto quanto batida e tão repleta de clichês quanto a relação entre patrão e empregada doméstica, consegue proporcionar uma bela visão sobre essa divisões existentes no Brasil, nesse caso específico no ambiente privado. Nossa tradição artística sempre mostrou esses atritos em outros meios, como na indústria (Eles não usam Black Tie), rural (Guerra de Canudos), política (Pra frente, Brasil). Já levar o foco da câmera para o ambiente doméstico e mostrar esse conflitos por dentro dos muros de casa foi uma proposta interessante que, apesar de não ser de fato novidade, foi mostrada com precisão.
Se pensarmos o cinema enquanto um registro de época, Que horas ela volta? é um bom indicador da cultura dos tempos atuais. É a empregada fofocando sobre a vida dos patrões, adolescentes empolgados com vestibular e conferindo suas notas na internet, um modelo de vida privada que se marca através da história.
É nesse aspecto que o filme possui seu lado negativo. Enquanto fruto de um modelo artístico que preze também pelo entretenimento, muito dele é obvio até demais. Os personagens seguem perfis fixos de modo a situar quem assiste sem maiores explicações. O foco principal é nas relações entre as três mulheres. Fabinho, enquanto jovem de classe média alta, é um mero clichê, e assim é absorvido. Da mesma maneira são Val e Bárbara, respectivamente a empregada pobre e futriqueira e a dona de casa com jeito de dondoca. Apenas Jéssica foge de estereótipos, pois de jovem pobre e desacreditada, que deveria apenas levar sua vida seguindo ordens sem questionar, mas que foi fruto de uma educação com um viés inclusivo, sai de qualquer percepção a priori que se possa ter.
O principal momento do filme, que é quando Val resolve entrar na piscina e finalmente quebra as barreiras existentes entre ela e os patrões, é posto abaixo pelo diálogo. É possível notar apenas pela cena que ela entrar na piscina representa essa quebra. Porém, ela fala pelo telefone com sua filha que está entrando na piscina, explicando verbalmente algo que dispensa falas. É a mesma lógica de explicar uma piada ou aqueles risos que aparecem nas sitcoms para informar que é a hora de rir. É técnica de cinema de entretenimento.
Que horas ela volta? funciona bem enquanto filme de conflitos e obra de entretenimento. Apesar de não ser uma obra de humor, muitas de suas cenas chegam a causar risos, até pelo estilo de Regina Casé, que definitivamente rouba a cena. E é uma obra que consegue dar destaque às relações sociais tão rígidas do Brasil. Esse sim é seu grande trunfo, por se debruçar sobre o ambiente doméstico e como mesmo nele o país é tão complexo em sua estrutura.
Guilherme Carvalhal
Itaperuna,
7/1/2016
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