COLUNAS
Sexta-feira,
12/2/2016
Fui pra Cuba
Marta Barcellos
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Arrisco-me. Com este título, meu texto pode ser lido na diagonal por pessoas apressadas e atraídas pela possibilidade de confirmar suas convicções políticas – a favor de Fla, ou de Flu. Estou no ambiente da internet, devo lembrar. Se quiser outro tipo de leitores, devo ao menos mudar o título, tirar a menção a Cuba. Ao “vai pra Cuba”.
Mas prossigo, no título, na intenção. Não vou falar de política, não desta política. E fui pra Cuba. Fui para descobrir que também eu costumo partir de convicções pré-estabelecidas: minha modesta vantagem é a flexibilidade e alguma vontade de me questionar.
Reconheço agora que se engendrava, em minha cabeça, no trajeto entre Rio e Panamá, sob a expectativa do pouso na ilha mítica, uma espécie de hipótese acadêmica, ou pré-pauta jornalística. Parada no tempo pré-consumo, Cuba seria mais do que um lugar de investigação do passado, mas também uma espécie de laboratório para pesquisar o futuro. A hipótese: haveria uma aproximação entre os cubanos e os jovens europeus (de países ricos, diga-se) anticapitalistas, que esnobam posses, e buscam “apenas” uma vida sustentável, sem automóveis ou PIBs crescentes?
Fui criada com utopias, e elas grudam em mim com facilidade (o que acho ótimo). Che é o herói perfeito - morreu heroicamente no tempo das utopias, antes que as coisas se complicassem. Pois, em Cuba, refestelei-me no mito Che e surpreendi-me com a beleza pacata (e nem tão descascada) de Havana. Eu tentava ultrapassar a condição de turista, para encontrar o cubano que conversaria francamente comigo, fornecendo-me todas as respostas (a confirmação da minha hipótese/pauta?), quando conheci Francisco e sua esposa.
Do alto de minha arrogância política-intelectual, despenquei num clichê, eu saberia depois. Um golpe do vigário.
No conto do vigário (“história elaborada com o objetivo de burlar alguém”) mais clássico, a vítima é fisgada por causa de sua ambição e da possibilidade de levar alguma vantagem, especialmente financeira. É quando o velhinho compra o bilhete da loteria “premiado”, crente de estar se “dando bem” em cima de uma pobre criatura desesperada (na verdade, o vigarista). Ou quando acreditamos na promoção oferecida pelo telemarketing, e aceitamos aquela milagrosa redução na conta do celular, ou aquele cartão de crédito estranhamente sem anuidade. Há golpes do vigário que vão parar na delagacia, outros no Procon, mas a maioria fica impune por envolver somente uma pequena – ou vergonhosa – perda.
Em geral, sou bastante desconfiada de situações nas quais me oferecem vantagem financeira. Não me orgulho disso, pois é algo que pode me afastar da generosidade alheia. Mas, pelo menos no caso das promoções arrasadoras, adotei um ceticismo automático: não gosto delas. Ao telefone, costumo deixar mudos os operadores de telemarketing: não, obrigada, não gosto de promoções, prefiro pagar caro. Prefiro não quero gastar minha energia para descobrir o quanto as vantagens são enganadoras – e não arrasadoras –, para, no fim, ainda perder um pouco da fé na humanidade. Digamos que costumo perder promoções fantásticas, mas vivo bem sem elas.
Dito isto, voltemos a Francisco e sua esposa. Se eles tivessem nos abordado oferecendo alguma vantagem na rua, certamente teríamos os identificado melhor. Mas não. Começou a chover, o museu planejado estava em reforma e paramos sob a marquise por alguns instantes: o que fazer já no quarto dia do centro histórico de Havana, com chuva? Foi quando Francisco, passando pela rua de mãos dadas com a esposa, reconheceu meu marido. Não se lembra de mim?, perguntou. Era funcionário do nosso hotel, estava de folga. .
Simpáticos, mas apressados, tentaram nos dar dicas, apontando a rua onde haveria um festival de salsa mais tarde, próximo também da casa onde Fidel Castro morou antes da revolução, próximo também cooperativa dos produtores de charutos. O caminho não parecia claro, apesar dos muitos gestos, quando a esposa de Francisco, sombrinha cor de rosa em punho, decidiu levar-nos, logo ali, tão próximo. Adorava o Brasil, as novelas, as músicas de Roberto Carlos. Por isso a gentileza, o andar apressado para poder em seguida retomar os compromissos do dia, ela professora, mãe de gêmeas. .
Não fui fisgada pela promessa de festival de salsa fora do roteiro turístico, nem pela perspectiva de comprar charutos mais baratos numa cooperativa. Fui fisgada pela vaidade de poder ser amiga da esposa de Francisco, pensaria mais tarde no hotel, relembrando minha decepção ao ver a expressão simpática dela se fechar, quando dissemos claramente que não compraríamos charutos. Eu, vítima. Vítima de uma trambiqueira, que nos fez pagar uma conta absurda de mojitos numa espécie de bar-emboscada, eu que só queria conversar, ser sua amiga, saber desinteressadamente de sua vida. .
Será? .
Pois é. A vítima do conto do vigário em geral não é tão inocente assim. Eu havia tirado fotos da sua “libreta”, a famosa caderneta de controle dos mantimentos dados pelo governo, e feito perguntas sobre a sua exótica rotina de cidadã cheia de saúde, de escolaridade e sem nenhuma liberdade. Era isso mesmo? E quanto aos detalhes: o que ela poderia me contar para que, ao voltar de viagem, eu pudesse postar minhas exclusivas impressões na rede social, junto com as fotos? Ora, fiquei amiga de uma cubana, me gabaria. Fui pra Cuba e no próximo debate teria minhas opiniões abalizadas. .
Exatamente como os gringos que sobem a favela de jipões camuflados, para “conhecer” de perto os pobres brasileiros. .
Claro que essa reflexão só veio depois, bem depois. Primeiro, espumei de raiva. Repassei minuciosamente o começo do encontro com o casal, cada detalhe, até ter certeza de que Francisco não era funcionário do hotel coisa nenhuma, que não foi por causa da religião afrocubana que minha amiga fugiu do selfie e que até as fotos três por quatro das gêmeas na carteira podiam ser armação. Talvez Francisco fosse apenas um nome emprestado do Papa, que andou por lá. Uma piada interna do casal. .
Enfim, fui pra Cuba e não “desvendei” Cuba. Minhas desculpas para quem chegou até aqui tentando descobrir se sou coxinha ou petralha. Voltei de Cuba com mais perguntas do que antes, e rindo da minha ingênua hipótese/pauta. Tive apenas minha experiência exótica de viagem. Para refletir sobre ela. .
Marta Barcellos
Rio de Janeiro,
12/2/2016
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